quinta-feira, 30 de julho de 2015

IRA

1 - Qual a definição de insuficiência renal aguda (IRA)?
Define-se IRA como a redução abrupta da taxa de filtração glomerular, que evolui ao longo de horas ou dias, resultando em incapacidade de eliminar metabólitos e de manter o equilíbrio hidroeletrolítico e ácido-básico.
Embora não haja uma definição laboratorial universalmente aceita, uma das mais usadas é a que  considera como IRA o aumento da creatinina, em um período de até duas semanas, de 0,5 mg/dl se o seu valor basal for menor que 2,5 mg/dl ou de mais de 20% em relação ao valor basal, se este for superior a 2,5 mg/dl.
2 - Qual a incidência de insuficiência renal aguda (IRA)?
A IRA mantém-se como importante condição clínica, afetando entre 5% e 7% de todos os pacientes internados e 30% dos internados em UTI. Apesar de avanços no conhecimento da fisiopatogenia e do estabelecimento de medidas preventivas eficazes, a incidência permanece inalterada, em parte pela presença de populações mais idosas e de maior gravidade, em parte pelo impacto de novos medicamentos, tratamentos e procedimentos diagnósticos nefrotóxicos.
3 - Qual a mortalidade da insuficiência renal aguda (IRA)?
A IRA associa-se a grande morbidade e, à semelhança do que ocorre com a incidência, a mortalidade permanece elevada e inalterada nos últimos 50 anos. O desenvolvimento de IRA determina aumento da mortalidade de qualquer condição clínica. Considerando-se todos os casos de IRA, inclusive os mais leves, a taxa de óbito fica em torno de 20%. Entre os pacientes mais graves, ou seja, aqueles com creatinina acima de 3 mg/dl e os que necessitam de diálise, ela sobe para 40% a 50%. Em pacientes internados em UTI, a taxa de óbito varia de 50% a 70%.
Apesar do impacto da IRA na sobrevida dos pacientes, eles geralmente morrem pela condição de base ou suas complicações, como sepse, falência múltipla de órgãos, choque circulatório, visto que o tratamento substitutivo, a diálise, é bastante efetivo.
4 - Como é classificada, do ponto de vista de sua fisiopatologia, a insuficiência renal aguda (IRA)?
A IRA é classificada em:
  • pré-renal: condições que determinam hipoperfusão renal, mas sem comprometer a integridade de seu parênquima;
  • renal: condições que lesam estruturas funcionais renais, como glomérulos, túbulos, vasos ou interstício.
  • pós-renal: quando há obstrução das vias urinárias entre o meato uretral externo e o colo vesical, ou quando há obstrução ureteral bilateralmente ou unilateralmente em paciente com rim único.
5 - Quais são as principais etiologias da insuficiência renal aguda (IRA) pré-renal?
Hipovolemia
  • hemorragia,
  • desidratação,
  • queimaduras extensas,
  • perdas gastrointestinais: náuseas, vômitos, drenagens cirúrgicas,
  • perdas renais: diurese osmótica, uso de diuréticos,
  • seqüestro: pancreatite, peritonite, politrauma, queimadura, hipoalbuminemia grave.
Débito cardíaco baixo
  • insuficiência cardíaca,
  • embolia,
  • arritmias,
  • valvopatias,
  • tamponamento cardíaco.
Alteração na relação entre resistência vascular sistêmica e renal
  • vasodilatação sistêmica: sepse, anti-hipertensivos, anafilaxia, anestésicos,
  • vasoconstrição renal: anfotericina B, ciclosporina, noradrenalina, adrenalina, hipercalcemia,
  • síndrome hepatorrenal
Hipoperfusão renal por comprometimento das respostas auto-reguladoras
  • uso de inibidor da cicloxigenase e de inibidor da enzima conversora de angiotensina
Síndrome de hiperviscosidade
  • mieloma,
  • policitemia,
  • macroglubulinemia.
6 - Quais são as principais etiologias da insuficiência renal aguda (IRA) renal?
Necrose tubular aguda (NTA)
  • induzida por isquemia: quando a redução da perfusão renal ocorre em intensidade ou duração suficientes para levar a morte celular, ou seja, trata-se da continuidade do processo fisiopatológico da IRA pré-renal,
  • induzida por toxinas: antibióticos (aminoglicosídeos, vancomicina, anfotericina B), contrastes iodados, mioglobina, hemoglobina, quimiterápicos (cisplatina).
Doenças de vasos renais de grande calibre
  • artéria renal: trombose, embolia, dissecção, vasculite, placa ateromatosa,
  • veia renal: trombose, compressão.
Doença da microcirculação renal e glomérulos
  • glomerulonefrites,
  • vasculites,
  • toxemia da gravidez,
  • síndrome hemolítica-urêmica,
  • púrpura trombocitopênica trombótica,
  • hipertensão acelerada,
  • coagulação intravascular disseminada.
Doenças túbulo-intersticiais
  • alérgicas: antibióticos (betalactâmicos, rifampicina, sulfas, trimetoprima), antiinflamatórios não-hormonais, captopril,
  • infecção,
  • infiltração: linfoma, leucemia, sarcoidose,
  • idiopática.
7 - Existem fatores de risco para o aparecimento da insuficiência renal aguda (IRA)?
Sim. São situações clínicas em que a capacidade de resposta às agressões ao rim está comprometida, havendo, portanto, aumento da susceptibilidade à injúria. Nestes grupos de pacientes, algumas situações, especialmente de hipoperfusão, que seriam facilmente toleradas, acabam por desencadear episódio de IRA. A identificação dos fatores de risco é importante pois é exatamente neste grupo que as medidas preventivas devem ser adotadas, como também a monitoração laboratorial da função renal, frente a um episódio potencialmente causador de IRA, para o diagnóstico precoce. São considerados fatores de risco para IRA:
  • diabete, idade superior a 65 anos, IRC prévia, redução volume circulante efetivo: doente crítico, insuficiência cardíaca congestiva, desidratação, cirrose, síndrome nefrótica, icterícia, mieloma múltiplo, doença arterial.
8 - Quais são as principais etiologias da insuficiência renal aguda (IRA) pós-renal?
A IRA pós-renal ocorre quando há obstrução das vias urinárias que traga repercussão aos dois rins ou a um rim único. O mais comum é a obstrução no colo vesical, que pode se dar por doença prostática, bexiga neurogênica ou uso de agentes anti-colinérgicos. Condições menos comuns incluem obstrução por coágulos, cálculos, uretrite com espasmo, obstrução ureteral intraluminal, por infiltração da parede ou por compressão externa (ligadura, tumor ou abscesso).
9 - Qual a fisiopatologia da insuficiência renal aguda (IRA) pré-renal?
A IRA pré-renal ocorre nos estados de hipoperfusão. A queda da pressão arterial estimula os barorreceptores do seio carotídeo e os cardíacos, que respondem com ativação dos sistemas simpático e renina-angiotensina-aldosterona. Aumentam-se os níveis de noradrenalina, angiotensina II e vasopressina, que, em conjunto, determinam redução do fluxo para pele, músculo e território esplâncnico, priorizando a perfusão cerebral e cardíaca. Com a redução da perfusão esplâncnica, a perfusão renal e a taxa de filtração glomerular serão preservadas por mecanismos compensatórios: vasodilatação da arteríola aferente (mediada por óxido nítrico e prostaglandinas) e vasoconstrição da arteríola eferente (mediada pela angiotensina II).
Quando os mecanismos compensatórios são sobrepujados, em geral com pressão sistólica menor que 80 mmHg, dá-se a IRA pré-renal. A IRA pode ocorrer mais precocemente em idosos, em pacientes já com comprometimento renal por hipertensão ou diabetes, em uso de inibidores de cicloxigenase e/ou inibidores da enzima conversora da angiotensina. Quando a hipoperfusão é mais grave ou mais prolongada, pode evoluir para forma renal – necrose tubular aguda isquêmica.
10 - Qual a fisiopatologia da insuficiência renal aguda (IRA) isquêmica?
Quando os fatores determinantes da IRA pré-renal não são corrigidos, há a evolução para lesão morfológica das células tubulares renais. Uma vez instalada, mesmo após a retirada da causa, a recuperação da função renal ocorrerá em uma a duas semanas. Em formas extremas, pode haver necrose cortical bilateral, lesão que é irreversível.
Ocorre nas mesmas condições da pré-renal, desde que a isquemia tenha intensidade ou duração maiores. São situações de maior risco: cirurgia cardiovascular de grande porte, trauma, sepse, hemorragias, depleção de volume. Causas menos graves podem causar IRA renal quando associadas  aos fatores etiológicos, como nefrotoxinas, ou quando ocorrem nos grupos de risco elevado para desenvolvimento de IRA, citados anteriormente. É muito comum que a etiologia da IRA renal seja multifatorial, isto é, resultado de agressões variadas e que ocorrem especialmente naqueles pacientes com fatores de risco, portanto com maior susceptibilidade a estas agressões.
Pode ser dividida em três fases:
  • Instalação – horas a dias
Período em que ocorre a hipoperfusão e se instala a lesão isquêmica. A redução da taxa de filtração glomerular (TFG) ocorre por: 1. redução da pressão de filtração glomerular pela redução do fluxo de sangue; 2. obstrução ao fluxo do filtrado glomerular nos túbulos por células epiteliais descamadas e restos necróticos, com redução do gradiente de pressão responsável pela filtração glomerular; 3. extravasamento retrógrado do filtrado glomerular através do epitélio lesado. A lesão predomina nas porções medulares dos rins, já naturalmente menos perfundidas e com alta taxa de metabolismo (segmento S3 do túbulo contornado proximal e porção espessa da alça de Henle). O restabelecimento do fluxo sanguíneo renal pode limitar a lesão isquêmica.
  • Manutenção
Persiste a lesão das células epiteliais, mesmo com a recuperação hemodinâmica. A TFG persiste baixa (5 a 10 ml/min), determinando oligúria, com conseqüente hipervolemia, uremia e suas complicações. Mantém-se vasoconstrição intra-renal por desequilíbrio entre os mediadores vasoativos (redução do NO – vasodilatador – e aumento da endotelina – vasoconstritor). Nesse ponto há lesão de reperfusão, mediada por radicais livres do oxigênio, mediadores de leucócitos e células parenquimatosas.
  • Recuperação
Ocorre a regeneração das células tubulares, com retorno gradativo da TFG. Neste momento pode haver poliúria, que se não observada e compensada, poderá levar a nova hipoperfusão renal. A poliúria pode ocorrer pelo uso de diuréticos, pela excreção de sal e solutos até então retidos e pela recuperação mais tardia das células epiteliais, responsáveis pela reabsorção de sal e água, em relação à filtração glomerular.
11 - Qual a fisiopatologia da insuficiência renal aguda (IRA) nefrotóxica?
As toxinas determinam IRA mais comumente em idosos, em pacientes com insuficiência renal crônica prévia ou hipovolemia. O mecanismo varia conforme a toxina:
  • vasoconstrição intra-renal: ciclosporina, contraste, anfotericina B,
  • toxicidade direta das células tubulares e/ou obstrução intratubular: aminoglicosídeo, aciclovir, pentamidina, anfotericina B, cisplatina, ciclofosfamida.
Há a possibilidade de IRA por toxinas endógenas:
  • mioglobinúria: ocorre na rabdomiólise (esmagamentos, isquemias, convulsões, álcool, infecções, hipertermia maligna, exercício em excesso). A mioglobina inibe o óxido nítrico, favorecendo a vasoconstrição intra-renal, e lesa diretamente os túbulos.
  • Hemoglobinúria: ocorre em hemólises maciças, como nas reações transfusionais graves. Tem os mesmos efeitos da mioglobina.
  • Cálcio: a hipercalcemia determina vasoconstrição renal.
  • Proteínas de cadeia leve: determinam obstrução dos túbulos e lesão de seu epitélio. Estão presentes no mieloma.
  • Hiperuricosúria: ocorre após quimioterapia nas doenças linfo ou mieloproliferativas. O excesso de ácido úrico determina obstrução tubular.
12 - Qual a fisiopatologia da insuficiência renal aguda (IRA) pós-renal?
A obstrução das vias urinárias determina, retrogradamente, aumento da pressão no sistema tubular renal e no espaço glomerular, reduzindo a pressão hidrostática responsável pela filtração.
13 - Qual o quadro clínico da insuficiência renal aguda (IRA)?
A IRA muitas vezes é assintomática em suas fases iniciais, sendo detectada apenas por monitoração laboratorial. Além disso, como ela geralmente ocorre concomitante com outras doenças, o quadro da doença específica é predominante e pode desviar para si a atenção.
Embora em alguns casos a IRA possa ocorrer com preservação do volume, na maioria das vezes a redução da diurese está presente e é um dos dados que chamam a atenção para o diagnóstico. Além disso, o comportamento da diurese pode auxiliar no diagnóstico. Anúria sugere obstrução completa das vias urinárias ou casos graves de isquemia renal; flutuações do débito urinário, obstrução intermitente. A recuperação da diurese após sondagem vesical indica IRA pós-renal.
Com a evolução da IRA, podem surgir sintomas e sinais de suas complicações: hipervolemia, acidose metabólica e uremia.
14 - Quais os principais achados decorrentes de hipervolemia?
Dispnéia e tosse são sintomas freqüentes de hipervolemia em função do edema pulmonar, inicialmente intersticial e depois alveolar. A dispnéia é progressiva e piora com o decúbito. A tosse, inicialmente seca, torna-se produtiva, com expectoração rósea, quando o edema pulmonar extravasa para alvéolos. A ausculta pulmonar evidencia crepitações, inicialmente nas bases, mas que pode se estender para todos os pulmões. Outros achados incluem taquicardia, turgência jugular, galope de B3 (pode haver de B4 quando há comprometimento de relaxamento do miocárdio). O edema, que surge inicialmente nos membros inferiores, ou dorso em acamados, pode evoluir para edema generalizado a depender da rapidez da instalação e do grau de hipervolemia.
15 - Quais as principais conseqüências da acidose metabólica?
A acidose metabólica tipicamente causa hiperventilação, com taquipnéia e incursões respiratórias profundas, caracterizando a respiração de Kussmaul. Em suas formas graves, sobretudo com pH inferior a 7,20, comprometimento de diferentes funções podem ocorrer:
  • cardiovascular
    • depressão da contratilidade miocárdica
    • redução da pressão arterial
    • dilatação arteriolar e venoconstrição, com centralização do volume de sangue
    • predisposição a arritmias
    • atenuação da resposta às catecolaminas
  • pulmonar
    • hiperventilação
    • menor eficácia muscular, podendo levar a fadiga
    • hipertensão pulmonar
  • sistema nervoso central
    • inibição do metabolismo e da regulação do volume celular
    • rebaixamento de consciência e coma
  • metabólico
    • hiperpotassemia
    • resistência à insulina, com hiperglicemia
    • aumento da demanda metabólica, inibição da glicólise anaeróbica, redução da produção de ATP
16 - Quais os principais achados decorrentes de uremia?
Os principais achados relacionados à uremia, nem sempre presentes em sua totalidade, são:
  • anorexia, náuseas, vômitos;
  • alterações do nível de consciência – letargia, agitação, torpor e coma; convulsões, flapping;
  • serosites – pericardite, raramente pleurite;
  • hemorragia digestiva alta;
  • diátese hemorrágica – tendência a sangramentos com exames laboratoriais normais.
17 - Quais outros dados clínicos são úteis na investigação da insuficiência renal aguda (IRA)?
A história cuidadosa, incluindo revisão detalhada do prontuário, pode auxiliar no diagnóstico precoce de IRA e na identificação de sua causa. Os dados mais relevantes para o diagnóstico de IRA pré-renal e renal isquêmica são: vômitos, diarréia, hemorragia, poliúria, queimaduras, pancreatite, febre, hipotensão (incluindo durante o período intra-operatório), antecedente de doença cardíaca ou hepática. Sinais precoces de hipoperfusão incluem sede, taquicardia, hipotensão postural, redução da pressão venosa jugular, mucosas secas e perda do turgor da pele. Dados objetivos incluem redução do peso e balanço hídrico negativo. Nas formas mais graves de hipoperfusão há hipotensão, palidez, extremidades frias, sudorese fria. Nessa fase já há queda do débito urinário.
Em relação à IRA renal, além dos achados relativos à hipoperfusão, deve-se estar atento para a exposição a nefrotoxinas endógenas e exógenas, achados compatíveis com vasculites sistêmicas e hematúria.
IRA pós-renal é sugerida por história anterior de redução progressiva do jato urinário, nictúria, aumento da freqüência das micções, aumento do volume da próstata, distensão vesical, massas palpáveis em abdome.
A presença de alguns sintomas e sinais pode sugerir causas específicas. Como exemplos, pode-se citar:
  • sintomas prévios de doença prostática;
  • dor em flanco: oclusão da artéria ou veia renal, doenças do parênquima renal com distensão da cápsula (ex. pielonefrite);
  • cólica renal: cálculos;
  • dor supra-púbica: distensão da bexiga por obstrução;
  • vasculite renal: muitas vezes acompanhada de vasculites em outros órgãos, como pele, seios de face e pulmões, com os sintomas relacionados ao acometimento desses órgãos. Pode haver ainda hipertensão, hematúria e anemia.
  • nefrite intersticial alérgica: febre, artralgias, lesões cutâneas pruriginosas
  • embolização de artéria renal: livedo reticular, sinais de embolia em extremidades.
18 - Como é feito o diagnóstico laboratorial da insuficiência renal aguda (IRA)?
O laboratório é fundamental para o diagnóstico de IRA. Embora exista muita controvérsia, a elevação da creatinina é o parâmetro mais usado para caracterização de sua presença. Os seguintes pontos de corte são adotados para o diagnóstico de IRA:
  • pacientes com creatinina basal menor que 2,5 g/dl: elevação da creatinina de 0,5 mg/dl em um período de até duas semanas
  • pacientes com creatinina basal maior que 2,5 g/dl: elevação da creatinina acima de 20% de seu valor basal em um período de até duas semanas
Quando a taxa de filtração glomerular cai para menos de 10 ml/min, a creatinina sérica aumenta em torno de 0,5 a 1,5 mg/dl/dia, dependendo da idade, da massa muscular e se há lesão muscular. A uréia sérica aumenta 10 a 20 mg/dl/dia, valores que podem ser maiores se houver catabolismo intenso, hemorragia digestiva ou uso de corticóide (pois ele reduz anabolismo protéico).
19 - Como pode ser estimada a depuração da creatinina?
A depuração da creatinina pode ser estimada pela fórmula de Cockcroft-Gault, de cálculo fácil inclusive à beira do leito:
figura01
Outra equação que estima a filtração glomerular é a desenvolvida pelo estudo MDRD (Modification of Diet on Renal Disease), que mais se aproxima dos métodos padrão ouro. Uma limitação do seu uso é necessidade do uso de computador no seu cálculo. Pode ser calculada pelo acesso a sites na internet ou pela consulta a tabelas com a idade e a creatinina do paciente.
figura02
No dia-a-dia, essa fórmula é usada para o ajuste de medicações de eliminação renal, sobretudo as nefrotóxicas.
20 - O que é o FENa e como ele pode auxiliar na diferenciação entre insuficiência renal aguda (IRA) pré-renal e renal?
Como a hipoperfusão renal é a principal causa de IRA, que pode ser pré-renal ou renal, vários dados laboratoriais podem ser usados para tentar diferenciar essas duas situações. Vale a pena lembrar, entretanto, que as duas condições são, na verdade, estágios diferentes dentro de um mesmo processo fisiopatológico e que a restauração da perfusão renal é a medida mais importante a ser tomada.
O índice de excreção fracionada de sódio (FENa) pode ser útil para diferenciar IRA pré-renal de renal. Ele baseia-se no fato de que na pré-renal há reabsorção de sódio nos túbulos, na tentativa de recuperar o volume plasmático, o que não ocorre na renal, pela lesão tubular instalada. A creatinina não é reabsorvida nas duas condições. A fórmula do FENa é:
figura03
  • FENa: índice de excreção fracionada de sódio
  • UNa: sódio urinário
  • PNa: sódio plasmático
  • UCr: creatinina urinária
  • PCr: creatinina plasmática
A interpretação de FENa é:
  • Menor que 1: IRA pré-renal
  • Maior que 1: IRA renal
As dosagens urinárias de sódio e creatinina são feitas a partir de amostra isolada, colhida antes do uso de diuréticos, pois eles podem elevar o FENa mesmo na IRA pré-renal. O FENa pode estar baixo em outras condições que não a pré-renal: glomerulonefrites, nefropatia por contraste, mioglobinúria e hemoglobinúria, NTA precoce (transição entre pré-renal e renal).
21 - Quais outros achados laboratoriais podem auxiliar na diferenciação entre insuficiência renal aguda (IRA) pré-renal e renal?
Os seguintes dados laboratoriais podem auxiliar na diferenciação das duas condições:
  • relação uréia/creatinina plasmáticas:
    • pré-renal: acima de 20:1 (a uréia é reabsorvida nos túbulos renais)
    • renal: entre 10-15
  • elevações de creatinina abaixo do esperado sugerem IRA pré-renal
  • concentração urinária de Na
    • pré-renal: menor que 20 mEq/L
    • renal: maior que 40 mEq/L
  • densidade urinária
    • pré-renal: maior que 1018
    • renal: menor que 1010
  • osmolalidade urinária/plasmática
    • pré-renal: maior que 1,5
    • renal: menor que 1,1
  • creatinina urinária/plasmática
    • pré-renal: maior que 40
    • renal: menor que 20
Apesar de todos esses indicadores, a melhor forma de se distinguir a IRA pré-renal da renal é pela resposta à reposição volêmica: o retorno ou a melhora da função renal após 24 a 72 horas indica IRA pré-renal. Esse critério até pode ser impreciso em relação às causas transitórias de NTA, mas nesses casos essa imprecisão não tem relevância clínica.
22 - Qual a importância do sedimento urinário no diagnóstico da insuficiência renal aguda (IRA)?
O sedimento urinário é útil na investigação da IRA, com alguns achados que podem sugerir uma ou outra condição:
  • Pré-renal: sedimento acelular, presença de cilindros hialinos (proteínas secretadas pela alça de Henle).
  • Pós-renal: sedimento normal, hematúria e piúria podem ocorrer nas doenças prostáticas e nas obstruções de causa intra-luminal.
  • NTA: presença de células tubulares, cilindros granulosos pigmentados, cilindros com células tubulares, hematúria microscópica, proteinúria leve (<1g/dia). O sedimento pode ser normal em 20% a 30% dos casos.
  • Lesão glomerular: hematúria, presença de cilindros hemáticos, proteinúria acima de 1g/dia.
  • Nefrite túbulo intersticial: presença de cilindros leucocitários e granulosos não pigmentados, eosinofilúria (> 5% dos leucócitos).
  • Hemoglobinúria e mioglobinúria: reação fortemente positiva para grupo heme na fita, com poucas hemácias ao exame microscópico.
23 - Quais outros exames laboratoriais podem ser úteis na investigação da insuficiência renal aguda (IRA)?
Hemograma completo e testes de coagulação são importantes. A presença de eosinofilia pode sugerir nefrite intersticial aguda, enquanto plaquetopenia e deformação das hemácias podem sugerir púrpura trombocitopênica trombótica, síndrome hemolítico-urêmica ou CIVD.
Enzimas musculares aumentadas (CPK e aldolase) sugerem rabdomiólise, que também cursa com níveis muito altos de fósforo. Exames direcionados para o diagnóstico de vasculites e colagenoses também podem ser úteis, com destaque para o FAN (fator anti-núcleo) e ANCA (anticorpo anti-citoplasma de neutrófilo).
Dosagem de eletrólitos e gasometria são fundamentais, sobretudo na condução desses pacientes, visto que hiperpotassemia e acidose metabólica graves podem ocorrer e devem ser tratadas prontamente.
24 - Quais exames de imagem auxiliam na investigação da insuficiência renal aguda (IRA)?
Exames de imagem devem ser realizados na busca da etiologia da IRA. O ultra-som, por sua segurança e disponibilidade, tende a ser o primeiro exame realizado. A não ser que haja uma causa bem definida para a IRA, ele estará sempre indicado. O ultra-som permite avaliar obstrução e dilatação das vias urinárias (lembrar que a ausência de dilatação não exclui obstrução, podendo ocorrer nas fases agudas, na hipovolemia, na fibrose retroperitonial). A avaliação do tamanho e da ecogenicidade dos rins auxilia na diferenciação entre quadros agudos e crônicos. Rins diminuídos sugerem doença crônica, exceto no diabete, na doença renal policística e na amiloidose. Aumento da ecogenicidade cortical também sugere quadro crônico.
Outros exames de imagem incluem:
  • pielografia retrógrada ou anterógrada – avaliam melhor as obstruções.
  • duplex ou ressonância – avaliam artérias e veias renais
Não se deve fazer urografia excretora pela nefrotoxidade do contraste. Caso haja necessidade de melhor avaliação de lesão obstrutiva das vias urinárias, avaliando-se o risco-benefício, pode se utilizar a tomografia helicoidal que utiliza uma quantidade menor de contraste.
25 - Quando realizar biópsia renal na investigação da insuficiência renal aguda (IRA)?
A biópsia renal está indicada em pacientes em que causas pré e pós-renais foram excluídas e a causa da IRA intrínseca permanece incerta, particularmente quando o quadro clínico e o laboratorial sugerem outro diagnóstico que não isquêmico ou nefrotoxidade (ex: vasculite, glomerulonefrite, SHU, PTT, nefrite túbulo-intersticial). Outra indicação é a não melhora do quadro de NTA após seis semanas de evolução.
26 - Quais são as bases do tratamento da insuficiência renal aguda (IRA) isquêmica?
Como não existe tratamento específico para a IRA isquêmica, a condução destes casos consiste em mediadas de suporte e prevenção de eventos que tragam mais injúria renal. O ponto fundamental é a correção dos estados de hipoperfusão. Nos pacientes hipovolêmicos, a reposição pode ser feita com cristalóides (não há vantagem comprovada com o uso de colóide). Esse ponto nem sempre é simples, pois a infusão de líquido em um paciente sem hipovolemia e já com IRA instalada poderá precipitar congestão pulmonar. O exame físico minucioso pode orientar quanto a presença de hipovolemia (taquicardia, pressão jugular baixa, hipotensão, sem sinais de congestão). Na dúvida, sobretudo em pacientes de maior risco para doença cardiovascular, a medida da pressão venosa central (PVC), ou até mesmo da pressão capilar pulmonar podem ser necessárias. Em cirróticos, esse problema é ainda maior, pela dificuldade de se diferenciar pré-renal de síndrome hepatorrenal.
Nos pacientes que persistem com redução do débito cardíaco, mesmo após correção da volemia, drogas inotrópicas devem ser empregadas (dopamina, dobutamina) com objetivo de se manter a pressão arterial média maior ou igual a 80mmHg. O uso rotineiro de dopamina em doses dopaminérgicas (0,5 a 2 mcg/kg/min) como medida preventiva ou para o tratamento de IRA não está indicado. Complicações que
reduzem o débito cardíaco, como arritmias e tamponamento cardíaco, devem ser corrigidas.
Devem ser evitadas as drogas com potencial nefrotóxico e as outras utilizadas devem ser corrigidas diariamente para função renal.
Está também recomendada a monitorização clínica e laboratorial diárias na busca de identificação das condições que indicam a necessidade de diálise.
27 - Os diuréticos devem ser empregados na necrose tubular aguda (NTA)?
A tentativa de transformar a NTA oligúrica em não-oligúrica com o uso de altas doses de diurético de alça não tem se mostrado eficaz em reduzir mortalidade ou mesmo a necessidade de diálise. Alguns problemas ainda podem estar associados a essa prática: redução da volemia do paciente e agravamento da hipoperfusão, atraso na avaliação do nefrologista e mesmo na indicação de diálise, efeito nefrotóxico do diurético (este ainda questionado).
28 - Quais são as bases do tratamento da insuficiência renal aguda (IRA) pós-renal?
Na IRA pós-renal o tratamento consiste em desobstruir as vias urinárias. Quando a lesão é uretral ou do colo vesical, faz-se sondagem vesical transuretral ou supra-púbica; quando é ureteral, cateterismo percutâneo da pelve renal ou implantação de cateter duplo-jota são as opções.
29 - Quais são as principais indicações de diálise na insuficiência renal aguda (IRA)?
São elas:
  • sinais de uremia: alteração do nível de consciência, convulsões, hemorragia digestiva, pericardite;
  • hipervolemia;
  • hiperpotassemia;
  • acidose intratável;
  • uréia acima de 100 mg/dl e/ou creatinina acima de 9,0mg/dl: essas indicações laboratoriais isoladamente são discutíveis.
30 - Quais são os métodos de diálise utilizados no tratamento da insuficiência renal aguda (IRA)?
Utilizam-se os mesmos utilizados para tratamento da insuficiência ou doença renal crônica: hemodiálise convencional e diálise peritoneal, associados às terapias de hemodiálise contínua. As terapias contínuas incluem hemofiltração e hemodiafiltração artério-venosa ou veno-venosa contínua. Elas determinam menor instabilidade hemodinâmica, permitem melhor controle metabólico e de líquidos. Especula-se ainda que na sepse poderiam remover citocinas deletérias. A escolha depende das condições do doente, experiência do nefrologista e disponibilidade local. Não há evidência do maior benefício de uma modalidade sobre as outras.
31 - Quais são as principais medidas preventivas em relação à insuficiência renal aguda (IRA)?
Evitar os estados de hipoperfusão e corrigi-los prontamente são as principais medidas preventivas. Assim, deve-se estar atento para a reposição volêmica adequada e, eventualmente, o emprego de drogas inotrópicas. Estes cuidados são especialmente importantes nos pacientes dos grupos de risco citados anteriormente. Outras condições de grande risco de hipoperfusão são grandes cirurgias, politrauma, sepse, pancreatite aguda, queimaduras extensas.
Medicações nefrotóxicas devem ser evitadas sempre que possível, sobretudo em pacientes já com outros fatores de risco. As mais comumente associadas à IRA são: anfotericina B, aminoglicosídeos, vancomicina e antiinflamatórios não-hormonais. Sempre que possível, devem ser substituídas por opções não-nefrotóxicas. Na impossibilidade da substituição, a dose deve ser ajustada para a função renal.
Há situações particulares que a tomada de medidas específicas comprovaram benefício:
  • hidratação venosa com solução hipotônica (salina a 0,45%) – prévia e após o uso de contraste nos grupos de risco.
  • hidratação venosa vigorosa, manitol e alcalinização da urina com bicarbonato de sódio – prevenção da IRA por rabdomiólise;
  • hiperidratação, alcalinização da urina e alopurinol – prevenção da IRA na síndrome de lise tumoral.
  • hidratação venosa e manitol – prevenção IRA pós transplante renal.
32 - Quais são as particularidades da lesão renal pelas principais drogas nefrotóxicas?
Anfotericina B
O risco de IRA aumenta com a associação com aminoglicosídeo, ciclosporina, dose diária maior que 35 mg e com a dose acumulada. Em situações de risco, deve-se utilizar dose de 0,6 mg/kg/dia precedido de solução salina. Hoje já existem opções para sua substituição: anfotericina lipossomal, voriconazol e caspofungina.
Aminoglicosídeos
A nefrotoxidade, em geral, surge após uma semana de uso. O risco aumenta com o fracionamento da dose (idealmente, usa-se dose única diária), doses elevadas e tempo prolongado. São opções para sua substituição: ciprofloxacino, aztreonan.
Vancomicina
Pode ser substituída pela linezolida em pacientes de risco.
Antiinflamatórios não-hormonais
Não devem ser usados para analgesia em pacientes de risco, devendo-se preferir os opióides.
33 - Quais são as medidas preventivas em relação à insuficiência renal aguda por contraste radiográfico?
Outra causa importante de IRA são os contrastes radiográficos, responsáveis por 10% de todos os casos de IRA intra-hospitalar. A medida preventiva mais eficaz é a prevenção da desidratação concomitante ao uso do contraste. A hidratação com salina a 0,45%, como citado anteriormente, é o esquema mais utilizado. Estudos recentes mostraram resultados promissores com a administração de N-acetilcisteína ou hidratação com salina com bicarbonato. Em pacientes de alto risco deve-se, quando possível, substituir a TC pela ressonância magnética e, no cateterismo cardíaco, não fazer a ventriculografia.
34 - Leitura recomendada
Burton RD. Diagnosis of acute tubular necrosis and prerenal disease. In. Burton DR. Up to date, version 13.2, 2005.
Denker BM, Brenner BM. Azotemia and urinary abnormalities. In. Fauci AS, Braunwald E, Isselbacher KJ et al. Harrison’s Principles of Internal Medicine. The Mc-Graw-Hill, 2001.
Klahr S, Miller SB. Acute oliguria. N Engl J Med 1998;338:671-675.
Lameire N, Vanholder R. Pathophysiologic features and prevention of human and experimental acute tubular necrosis. J Am Soc Nephrol2001;17 (suppl):s20-s32.
Murphy SW, Barrett BJ, Parfrey PS. Contrast nephropathy. J Am Soc Nephrol 2000;11:177-182.
Singri N, Ahya SN, Levin ML. Acute renal failure. JAMA 2003;289:747-751.
Thadani R, Pascual M, Bonventre JV. Acute renal failure. N Engl J Med 1996 ;334 :1448-1460.

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