quinta-feira, 27 de março de 2014

Peritonite

Peritonite




A peritonite é um processo inflamatório difuso ou localizado, que afeta o revestimento peritoneal.1,2 Existem 2 formas de peritonite, aguda e crônica, porém suas causas são numerosas e incluem bactérias piogênicas (p. ex., Escherichia coli), tuberculose, fungos, parasitas (como aqueles oriundos de cistos hidáticos ou abscessos amébicos hepáticos rompidos), carcinomatose, irritação química (como a irritação causada pela bile), reação de hipersensibilidade farmacológica, reação a corpo estranho e algumas doenças sistêmicas (como a febre familiar do mediterrâneo e o lúpus eritematoso sistêmico). Somente a peritonite aguda causada por bactérias ou fungos, incluindo as peritonites primária e secundária, será discutida aqui. A peritonite primária, também chamada espontânea, não está associada a nenhum distúrbio intra-abdominal subjacente como causa direta de infecção, mas geralmente envolve um distúrbio subjacente que inibe as defesas normais do hospedeiro na cavidade abdominal. A peritonite secundária possui um foco intra-abdominal que inicia a infecção. A peritonite tuberculosa é considerada em outro capítulo [ver Tuberculose].

Peritonite bacteriana espontânea (PBE)

Epidemiologia e etiologia

A peritonite bacteriana espontânea (PBE) vem sendo identificada com frequência cada vez maior em pacientes com hepatopatia crônica avançada e ascite concomitante ou insuficiência hepática fulminante acompanhada de ascite.3,4 A hepatopatia crônica subjacente geralmente é a cirrose alcoólica em pacientes de idade mais avançada, enquanto a cirrose pós-necrótica predomina entre crianças e adultos jovens. A PBE é uma condição comum e séria, que ocorre em 10 a 30% dos pacientes com cirrose e ascite e está associada a uma mortalidade da ordem de 30 a 50%.2,5-7 O risco de PBE é maior em indivíduos cirróticos que apresentam baixos níveis de proteína na ascite (= 1 g/dL).8,9 A E. coli é a causa mais comum de PBE, sendo isolada em cerca da metade dos pacientes. As espécies de pneumococos e estreptococos são cada uma responsável por 15 a 20% dos casos; as espécies de Klebsiella são responsáveis por cerca de 10% dos casos; e os organismos anaeróbicos ou microaerófilos causam aproximadamente 5% dos casos. Staphylococcus aureus é uma causa infrequente de PBE, mas constitui uma das principais causas de peritonite em pacientes cirróticos com shunts peritoneovenosos de LeVeen. Uma variedade de outros organismos, entre os quais Listeria monocytogenes, Campylobacter coli e espécies de Aeromonas, têm sido responsáveis por casos isolados de PBE.10 Na maioria dos casos em que o organismo causador é aeróbico, um único organismo está envolvido, e a bacteremia concomitante é um achado frequente.
Embora a incidência de peritonite primária seja maior entre as crianças, também pode desenvolver-se em adultos, sendo que quase todos os pacientes adultos afetados são mulheres.11 Apesar de muitos pacientes terem tido nefrose, a maioria não apresenta ascite preexistente. A fonte de infecção geralmente é oculta, mas pode envolver a flora genital feminina. Os organismos infecciosos quase sempre são pneumococos ou estreptococos do grupo beta-hemolítico A. Os bacilos gram-negativos raramente estão implicados. Por motivos ainda desconhecidos, a incidência da peritonite primária sofreu uma queda acentuada nas últimas décadas.
Ocasionalmente, a PBE desenvolve-se em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico e nefrite lúpica, sem ascite detectável, que na maioria dos casos estão sob tratamento com corticosteroides. Os agentes etiológicos mais comuns desta forma de PBE são os cocos gram-positivos, como Streptococcus pneumoniae e estreptococos do grupo B. A via de infecção mais provável é a semeadura bacterêmica do líquido ascítico, que pode ser precipitada por hipertensão portal, shunt intra-hepático, supercrescimento bacteriano intestinal e comprometimento dos mecanismos de defesa do hospedeiro, incluindo a diminuição da atividade bactericida no líquido ascítico.3,6 Com menos frequência, a PBE resulta da migração transmural de bactérias entéricas (possivelmente associadas à diarreia, que é um sintoma comum na cirrose). A hepatopatia severa, o carcinoma hepatocelular, o sangramento gastrintestinal e um foco de infecção no trato urinário ou em outra parte do corpo são fatores que aumentam o risco de PBE.9,12,13 Uma paracentese prévia pode contribuir para alguns casos. As lesões penetrantes do trato biliar, a úlcera péptica e a inflamação intestinal evidente (como uma apendicite ou diverticulite) aparentemente não são fontes de infecção.

Diagnóstico

Características clínicas. A manifestação clínica da PBE frequentemente é mínima.3,6,7 Embora a ascite esteja sempre presente, o volume de líquido ocasionalmente pode ser pequeno o bastante para requerer confirmação por ultrassonografia. A febre é o sintoma mais comum, mas está ausente em mais de 30% dos casos. A dor abdominal e a encefalopatia hepática estão presentes na maioria dos pacientes. Entretanto, apenas metade dos pacientes com PBE apresentam sensibilidade abdominal, enquanto os sinais e sintomas de infecção podem estar ausentes em até 1/3 dos casos. Desta forma, a suspeita de PBE deve ser levantada diante de qualquer paciente cirrótico que apresente hipotensão ou deterioração clínica inexplicável.

Exames laboratoriais. O principal aspecto do diagnóstico consiste em examinar o líquido ascítico obtido por paracentese, em busca de bactérias e leucócitos. A contagem de leucócitos polimorfonucleares (PMN) no líquido ascítico é o melhor indicador de PBE. Embora as contagens de PMN acima de 500 células/mcL sejam consideradas específicas para PBE, contagens iguais ou superiores a 250 células/mcL sugerem o diagnóstico de PBE e são consideradas específicas o bastante para determinar a necessidade de instituição de tratamento para PBE em pacientes cirróticos sem outras evidências de infecção. Uma contagem de PMN no líquido ascítico abaixo de 250 células/mcL exclui o diagnóstico de PBE.6,7,14 Embora alguns estudos tenham sustentado o uso de esterase leucocitária e tiras de nitrito para testar a presença de leucócitos no líquido ascítico, há controvérsias quanto ao uso desta prática de detecção rápida de cabeceira para PBE.15,16
Como as contagens bacterianas costumam ser muito baixas, a coloração do líquido ascítico pelo método de Gram na PBE tipicamente resulta negativa. Entretanto, uma coloração de Gram é sempre útil, pois a visualização de um único tipo bacteriano seria consistente com a PBE, enquanto a presença de múltiplas formas bacterianas seria sugestiva de peritonite secundária. Dada a baixa concentração de bactérias, o rendimento das culturas é melhor com a inoculação de 10 a 20 mL de líquido ascítico em uma garrafa de hemocultura ou BACTEC, junto à cabeceira do leito.14
Três variantes de PBE foram identificadas com base nas contagens de PMN no líquido ascítico e culturas. Na PBE típica, a contagem de PMN é igual ou superior a 250 células/mcL, e as culturas são positivas. Quando a contagem de PMN é igual ou superior a 500 células/mcL, mas as culturas são negativas, a síndrome é denominada ascite neutrofílica cultura-negativa (ANCN). Quando a contagem de PMN é abaixo de 250 células/mcL e as culturas são positivas, a síndrome é denominada bacteriascite (BA). As características clínicas e o prognóstico da PBE e da ANCN são indistinguíveis, e ambas variantes devem ser tratadas do mesmo modo. Em contraste, a BA pode ser autolimitada. Se os pacientes forem assintomáticos, é possível monitorá-los com observação intensiva e repetição da paracentese após 48 horas. A terapia antibiótica pode ser iniciada, caso haja desenvolvimento de sintomas clínicos ou se a contagem de PMN no líquido ascítico aumentar.
É importante distinguir a PBE da peritonite secundária resultante de doença intra-abdominal, como ocorre na perfuração visceral. Uma contagem de leucócitos no líquido ascítico igual ou superior a 10.000/mcL é sugestiva de peritonite secundária, do mesmo modo como a detecção de múltiplas espécies de bactérias, organismos anaeróbicos ou fungos. Os pacientes certamente devem ser sempre avaliados clínica e radiologicamente, a fim de excluir a hipótese de haver um processo intra-abdominal subjacente que possa causar peritonite secundária. A leucocitose no sangue periférico e as hemoculturas positivas são achados comuns tanto na PBE como na peritonite secundária.

Diagnóstico diferencial

A peritonite bacteriana pode ser estreitamente mimetizada pela pancreatite aguda, em particular no paciente cirrótico [ver também Infecções pancreáticas, adiante]. A dor abdominal, febre, sensibilidade de rebote, hipotensão e leucocitose periférica são comuns tanto na peritonite como na pancreatite aguda. Em um paciente com pancreatite, uma aspiração abdominal diagnóstica pode até revelar um líquido turvo, porém esta turbidez é causada pelos glóbulos de gordura flutuantes derivados da necrose gordurosa. Níveis séricos bastante elevados de amilase sérica geralmente são detectados na pancreatite aguda, contudo estes níveis altos também ocorrem na peritonite subsequente à perfuração ou obstrução intestinal e na presença de insuficiência renal.
Em um paciente com cirrose e ascite, algumas condições podem ser confundidas com peritonite, tais como a úlcera péptica aguda, colecistite, obstrução da artéria mesentérica e outros processos intra-abdominais. Nestas circunstâncias, a paracentese é útil para se estabelecer um diagnóstico.
A peritonite bacteriana aguda pode ser distinguida da peritonite tuberculosa pela observação de vários aspectos. A peritonite tuberculosa é marcada por um curso mais indolente, ausência de leucocitose periférica, evidência radiológica de tuberculose pulmonar e uma resposta mononuclear no líquido peritoneal. No paciente com peritonite tuberculosa sem cirrose nem ascite, o abdome pode exibir uma consistência pastosa característica.
A peritonite pode ser superficialmente sugerida pela dor abdominal da porfiria aguda, pela cólica plúmbica, pela acidose diabética e pela crise tabética, mas os outros aspectos destas doenças servem para distingui-las da peritonite. Os sinais e sintomas da febre mediterrânea familiar – temperatura alta, dor abdominal, defesa muscular abdominal e leucocitose periférica – podem sugerir uma peritonite bacteriana. A periodicidade da febre familiar do mediterrâneo e sua ocorrência de forma predominante em descendentes de sefardi, armênios e árabes são úteis para diferenciá-la da peritonite bacteriana.
Pode ser difícil diagnosticar a PBE em um paciente com lúpus eritematoso sistêmico que apresente dor abdominal e febre. Estes sintomas podem ter origem em uma variedade de problemas cirúrgicos independentes (p. ex., úlcera perfurada, obstrução intestinal e oclusão mesentérica) que precisam ser distinguidos dos problemas abdominais diretamente relacionado ao lúpus, como a vasculite, pancreatite secundária à vasculite ou terapia com corticosteroide, e PBE. O exame do líquido peritoneal obtido por paracentese, culdocentese ou durante a laparoscopia pode ser a única forma de determinar a ocorrência da peritonite bacteriana.

Tratamento

Até a disponibilização dos resultados da cultura, o paciente deve receber uma cobertura ampla dirigida contra os organismos entéricos. Os fármacos nefrotóxicos, incluindo os aminoglicosídeos, devem ser evitados sempre que possível.17 O cefotaxime (2 g, via endovenosa, a cada 8 horas) emergiu como agente favorito para uso no tratamento empírico da PBE. Entre os agentes alternativos úteis estão o ceftriaxone, ceftazidime, cefonicida, ceftizoxime, ampicilina-sulbactam, meropenem e imipenem-cilastatina, além das fluoroquinolonas (isto é, ciprofloxacina, levofloxacina, gatifloxacina e moxifloxacina).6,7 Tradicionalmente, os antibióticos endovenosos são administrados durante 10 a 14 dias. Entretanto, a terapia com duração de 5 dias parece ser igualmente efetiva, desde que o paciente apresente uma evolução clínica satisfatória e seu líquido ascítico esteja estéril, com uma contagem de PMN < 250 células/mcL antes da descontinuação dos antibióticos.6,7,18,19
A insuficiência renal, associada ao desenvolvimento da síndrome hepatorrenal em pacientes com cirrose avançada, é uma complicação frequente da PBE.20 As perturbações funcionais vasculares que resultam em vasodilatação periférica e vasoconstrição renal provavelmente são responsáveis.21 As infusões de albumina (1,5 g/kg no momento do diagnóstico; e 1 g/kg no dia 3) podem diminuir substancialmente a incidência de insuficiência renal e a mortalidade entre os pacientes com PBE.22,23

Profilaxia. Como os pacientes cirróticos apresentam risco aumentado de desenvolvimento de PBE primária, em especial aqueles com baixa concentração de proteínas no líquido ascítico, e porque as recidivas são observadas em 43% destes pacientes em um período de 6 meses e em 69% dentro de um período de 1 ano após o episódio inicial de PBE, os regimes de profilaxia primária e secundária atualmente são recomendados para certos subgrupos de pacientes.24 Em pacientes cirróticos sem sangramento e com ascite persistente após um episódio inicial de PBE, a profilaxia secundária contínua com norfloxacina oral (400 mg/dia) ou ciprofloxacina (750 mg/semana) atualmente são recomendadas.25 Os agentes antimicrobianos orais alternativos para uso profilático incluem a ciprofloxacina, levofloxacina, trimetoprima-sulfametoxazol e amoxilina-clavulanato. Em pacientes cirróticos com hemorragia no trato gastrintestinal superior, recomenda-se a profilaxia primária com norfloxacina oral (400 mg/12 horas) ou a terapia sistêmica alternativa (ciprofloxacina, levofloxacina, ampicilina-sulbactam), por um período mínimo de 7 dias. A profilaxia primária com norfloxacina ou outra fluoroquinolona também deve ser considerada para pacientes cirróticos com baixa concentração de proteínas no líquido ascítico (isto é, < 1,5 g/L).6,7,26-28 A profilaxia apropriada não só diminui a incidência de PBE como também retarda a síndrome hepatorrenal e melhora a sobrevida geral.24,29

Peritonite secundária

Etiologia

A peritonite secundária ocorre como complicação de uma doença intra-abdominal. Pode resultar de apendicite, diverticulite, feridas abdominais penetrantes, trauma fechado no abdome, perfuração do trato gastrintestinal (p. ex., por úlcera péptica ou neoplasia intestinal) ou ruptura de um abscesso intra-abdominal. A peritonite secundária pode ser dividida em casos espontâneos, que são causados por uma doença subjacente (p. ex., apendicite ou diverticulite), e casos resultantes de rompimento visceral incorridos de cirurgia, procedimento ou episódio de traumatismo.30 A maioria destas infecções é polimicrobiana. Os patógenos incluem tanto espécies anaeróbicas (principalmente Bacteroides fragilis, peptococos e peptoestreptococos) como espécies aeróbicas (E. coli, espécies de Proteus, espécies de Klebsiella e vários estreptococos e enterococos).31 A bacteremia – que ocorre em apenas 20 a 30% dos casos – é mais comumente causada por E. coli, espécies de Bacteroides, ou ambas.32-34 O prognóstico da peritonite secundária depende da causa subjacente e da resposta fisiológica do paciente à infecção. A mortalidade é menor entre os pacientes com apendicite ou úlcera duodenal perfurada (10%), e maior entre aqueles com outros processos intra-abdominais (50%) ou peritonite pós-operatória (60%). Tanto a mortalidade como a probabilidade de complicações, incluindo a necessidade de uma 2ª operação, aumentam conforme a resposta fisiológica do paciente à doença se torna mais intensa. Esta relação pode ser mais facilmente avaliada utilizando o sistema de escore Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II (APACHE II).32,33
“Peritonite terciária” é um termo relativamente novo, que se refere à persistência da infecção intra-abdominal após o tratamento médico-cirúrgico inicial da peritonite secundária.35 Na discussão sobre peritonite terciária, nem todos os autores concordam quanto à definição desta síndrome. Em um caso típico de peritonite terciária, a exploração operatória realizada em um paciente com sinais e sintomas de peritonite após ter recebido tratamento prévio para peritonite revelará a existência de inflamação e crescimento bacteriano, apesar da ausência de um foco de infecção contínua, como uma víscera perfurada, tecido gangrenoso ou abscesso. Os organismos recuperados tendem a ser considerados não patogênicos e a serem atípicos da flora entérica. A peritonite terciária pode ser considerada evidência de um tipo de falha das defesas do hospedeiro.

Diagnóstico

Os aspectos clínicos da peritonite secundária incluem mais comumente os sinais peritoneais, como defesa muscular involuntária, sensibilidade à percussão e dor abdominal. Pode haver distensão abdominal. O abdome frequentemente não é silenciosoE é comum haver febre e leucocitose. A presença de ar livre pode ou não ser visualizada nas radiografias abdominais. Um ultrassom ou tomografia computadorizada (TC) mostrando a presença de gases ou líquido livre associados a um quadro clínico compatível confirmam o diagnóstico. Quando o diagnóstico é clinicamente evidente, os exames radiológicos são desnecessários.
Na ausência de ascite, o peritônio apresenta uma capacidade notável de conter e localizar a infecção a uma parte do abdome. Assim, em situações como a ruptura do apêndice, há desenvolvimento de uma peritonite localizada que resulta na formação de um abscesso periapêndice ou pélvico [ver Abscessos intra-abdominais, adiante].

Tratamento

A peritonite secundária à perfuração intestinal, apêndice gangrenoso rompido ou traumatismo penetrante requer intervenção cirúrgica imediata, além de terapia antimicrobiana. A terapia cirúrgica para controle do foco deve ser direcionada para a correção da doença subjacente, desbridamento de tecidos circundantes e prevenção de infestação microbiana recorrente. Para tanto, geralmente é necessário realizar drenagem, ressecção, exclusão ou sutura da víscera envolvida durante a laparotomia ou laparoscopia. A lavagem intraoperatória com salina e o desbridamento peritoneal radical não se mostraram úteis. A lavagem peritoneal pós-operatória e a laparotomia repetida planejada foram sugeridas, mas não melhoram o resultado e acabam levando a novas cirurgias, internações mais prolongadas e custos maiores do que com a adoção de uma estratégia de reoperação “sob demanda”.36,37
Cerca de 20 a 30% dos pacientes que necessitam de operação para tratamento da peritonite ou de um abscesso intra-abdominal terão de se submeter a um 2º procedimento cirúrgico para resolver a infecção e estabelecer um controle do foco adequado.38 As avaliações realizadas pelos cirurgiões sobre a adequação do controle do foco alcançado com o procedimento operatório original têm se mostrado fortemente preditivas da necessidade subsequente de reoperação e da mortalidade do paciente.39
A escolha de um agente antimicrobiano depende dos organismos envolvidos na peritonite. A seleção inicial, todavia, é sempre feita antes da disponibilização dos resultados da cultura e deve considerar os organismos predominantes no cólon: B. fragilis, bacilos gram-negativos, estreptococos e enterococos. Estudos de experimentação animal e a experiência clínica demonstraram a importância do uso de antibióticos que sejam efetivos tanto contra bactérias aeróbicas como contra bactérias anaeróbicas no tratamento de pacientes com peritonite polimicrobiana. Contudo, os estudos clínicos falharam em estabelecer a superioridade de qualquer regime em particular. Os antibióticos mais modernos, que fornecem um amplo espectro de cobertura contra numerosas espécies aeróbicas e anaeróbicas, muitas vezes possibilitam a instituição de terapias com um único antibiótico. Muitos especialistas acreditam que é útil distinguir entre as infecções intra-abdominais adquiridas na comunidade, como apendicite e diverticulite, e aquelas adquiridas no contexto do tratamento de saúde, como a peritonite pós-operatória decorrente de vazamento anastomótico ou abscesso subfrênico pós-operatório. Entre os agentes considerados úteis para o tratamento das infecções adquiridas na comunidade, estão a ticarcilina-ácido clavulânico, cefoxitina, piperacilina-tazobactam, ertapenem, meropenem, doripenem, moxifloxacina, tigeciclina e imipenem-cilastatina. Os regimes multifármacos efetivos incluem o uso da quinolona ou de uma cefalosporina de 3ª geração combinado ao metronidazol. Para as infecções intra-abdominais adquiridas no contexto do tratamento de saúde, muitos recomendam usar um carbapenêmico, piperacilina-tazobactam, ou ceftazidime ou cefepime combinado ao metronidazol. A terapia com aminoglicosídeo geralmente é reservada para as situações em que há altas taxas de organismos resistentes de Pseudomonas aeruginosa ou Enterobacteriaceae produtora de betalactamase de espectro estendido (ESBL - extended spectrum blactamase), espécies de Acinetobacter ou outros bacilos gram-negativos com resistência a múltiplos fármacos. É preciso considerar sempre a possibilidade de infecção por Staphylococcus aureus resistente à meticilina (SARM) no contexto das infecções associadas ao tratamento de saúde, sendo que o uso empírico antecipado de vancomicina pode ser útil até a disponibilização dos resultados da cultura [ver Terapia antimicrobiana]. Embora múltiplos fármacos forneçam um espectro de cobertura antimicrobiana maior, tais agentes não parecem ser mais efetivos do que os regimes com um único fármaco. Em todos os casos, a escolha final dos antibióticos deve ser determinada pelos resultados da cultura e do teste de sensibilidade, bem como pelo curso clínico.
A maioria dos antibióticos alcança concentrações no líquido ascítico que equivalem a pelo menos a metade dos níveis encontrados simultaneamente no soro e que excedem a concentração inibitória mínima para o organismo infectante. Por este motivo, a terapia sistêmica isolada geralmente é adequada para o tratamento da peritonite bacteriana em pacientes com ascite. A instilação intraperitoneal de antibióticos aparentemente é desnecessária. São raros os estudos realizados de forma sistemática sobre a duração requerida do curso de antibiótico. Para a maioria dos pacientes, os agentes antimicrobianos podem ser descontinuados assim que os sinais clínicos de infecção começam a se resolver, e a temperatura e contagem de leucócitos sanguíneos começam a voltar ao normal. Os pacientes em geral não requerem mais de 7 dias de tratamento, sendo que muitos podem ser tratados por períodos menores.40-42

Peritonite em pacientes de diálise

Epidemiologia

A infecção continua sendo um problema importante para os pacientes em tratamento com diálise peritoneal. A peritonite desenvolve-se em até 60% dos pacientes submetidos à diálise peritoneal ambulatória contínua, ainda no 1º ano de tratamento, e 20 a 30% destes pacientes apresentam recidivas da infecção. Os pacientes idosos são os mais vulneráveis.43

Diagnóstico

Características clínicas. A peritonite é indicada pelo desenvolvimento de febre, sensibilidade ou dor abdominal e leucocitose, e pelo isolamento de um agente bacteriano ou micótico a partir do líquido efluente de um paciente sob diálise peritoneal. O isolamento de bactérias a partir do dialisado de um paciente que não apresenta estes achados frequentemente sinaliza a ocorrência de contaminação, e não de infecção. A turbidez do dialisado pela presença de neutrófilos é observada em 2 a 3% das diálises. Embora a turbidez em si não necessariamente indique a existência de peritonite, deve ser considerada uma indicação de infecção até a disponibilização dos resultados da cultura. Entretanto, a ausência de bactérias ao exame de uma amostra de sedimento de dialisado corada pelo método de Gram não necessariamente confirma a ausência de infecção, dada a necessidade de diluições extensivas da amostra. Sendo assim, não é possível se basear em um resultado negativo da coloração de Gram para discriminar entre infecção e inflamação estéril.43

Bacteriologia. Na peritonite, os principais organismos a causarem complicação na diálise peritoneal são os estafilococos coagulase-negativos, S. aureus, P. aeruginosa, E. coli e outros organismos entéricos, além de espécies de Candida.43-45 A internação recente constitui um dos principais fatores de risco de desenvolvimento de peritonite associada à diálise causada por espécies bacterianas resistentes a antibióticos, incluindo SARM.46 Os organismos que menos comumente causam peritonite em indivíduos submetidos à diálise peritoneal incluem os bolores (p. ex., zigomicetos) e as micobactérias não tuberculosas (atípicas).47,48 Os micro-organismos podem entrar na cavidade peritoneal exogenamente (ou seja, após a colonização da área da ferida abdominal ou por contaminação do dialisado) ou endogenamente (isto é, por bacteremia ou migração transmural da flora intestinal, talvez intensificada por um traumatismo induzido por cateter). A maioria dos episódios é monomicrobiana, mas também pode ocorrer peritonite polimicrobiana.49,50 A falha em responder à terapia antibiótica dentro de 96 horas com frequência sinaliza a ocorrência de infecção por bacilos gram-negativos (tipicamente, P. aeruginosa). O prognóstico destes pacientes é pior do que o prognóstico dos pacientes que respondem rapidamente. Pode ser necessário remover o cateter de diálise para controlar a infecção.

Tratamento

A peritonite causada por espécies de Candida é mais frequentemente uma complicação da diálise peritoneal, cirurgia gastrintestinal ou perfuração de víscera abdominal. A peritonite por Candida que agrava a diálise peritoneal é tratada com anfotericina B endovenosa ou intraperitoneal, ou ambas, a uma concentração final no dialisado de 2 a 4 mcg/mL. O fluconazol também pode ser útil para o tratamento da peritonite causada por Candida albicans, assim como uma equinocandina (p. ex., caspofungina).43,51
Enquanto a adição de lavagem peritoneal, com ou sem antibióticos, aparentemente não melhora os resultados promovidos pelos antibióticos endovenosos e pela terapia cirúrgica convencional, a administração intraperitoneal de antibióticos pode ser útil em casos de pacientes que necessitam de diálise peritoneal. Exemplificando, é possível adicionar diferentes antibióticos diretamente ao dialisado, em concentrações específicas, como 50 mg de ampicilina/L ou 5 a 10 mg de gentamicina/L. Dada a possibilidade de ocorrer bacteremia, os antibióticos também devem ser administrados por via endovenosa nestes pacientes, em uma dosagem adequada ao nível de função renal. Quando a peritonite se desenvolve como complicação da diálise peritoneal ou de um shunt peritoneovenoso, seu controle frequentemente requer a remoção ou substituição do cateter durante a administração de antibióticos.43,51 Em pacientes com história de peritonite causada por S. aureus, a profilaxia com uso tópico de pomada à base de mupirocina (aplicada nas narinas), uso tópico de creme de gentamicina (aplicado no local de saída do cateter) ou administração oral de rifampina pode diminuir a incidência de episódios subsequentes de peritonite estafilocócica e perda de cateter peritoneal.43,51-54 Além disso, para a colocação do cateter de diálise peritoneal, a profilaxia antibiótica endovenosa pré-operatória diminui o risco de peritonite, mas não afeta a incidência de infecção junto ao túnel ou saída do cateter.55

Abscessos intra-abdominais

Os abscessos intra-abdominais podem manifestar-se como complicações de uma cirurgia abdominal, de condições intra-abdominais (p. ex., diverticulite, apendicite, doença no trato biliar, pancreatite, perfuração visceral, peritonite) ou de um traumatismo abdominal penetrante; como febre de origem indeterminada; ou como disfunção de órgãos adjacentes (p. ex., a conhecida pneumonia de lobo inferior associada a um abscesso subfrênico ou à obstrução do intestino delgado). A disseminação bacterêmica da infecção a partir de um foco distante para um sítio intra-abdominal é menos comum como causa de abscessos intra-abdominais.
Os abscessos intra-abdominais são convenientemente classificados de acordo com a localização anatômica em que ocorrem: intraperitoneal, retroperitoneal ou visceral. Os abscessos intraperitoneais são áreas de peritonite localizada em que a infecção progride, mas é fisicamente contida pelo omento, peritônio e vísceras adjacentes. As infecções retroperitoneais incluem as infecções associadas à pancreatite, abscessos perinéfricos e abscessos paravertebrais. Os abscessos viscerais desenvolvem-se junto às vísceras abdominais – de modo predominante no fígado e muitas vezes no baço – e outros órgãos. De modo geral, a localização do abscesso geralmente não afeta o diagnóstico nem o tratamento, exceto pela influência na escolha entre as formas percutânea ou cirúrgica de drenagem.

Abordagem geral de abscessos intra-abdominais

Diagnóstico

Embora a localização dos abscessos determine suas características particulares, muitas infecções intra-abdominais compartilham alguns elementos comuns. A febre, por exemplo, é quase invariável e muitas vezes recorre em picos, podendo ser acompanhada de calafrios. Pode haver desenvolvimento de hipotensão e até de choque séptico. A dor abdominal é um dos principais indícios da presença de um abscesso intra-abdominal, e sua ausência pode dificultar bastante o diagnóstico. Em pacientes geriátricos, em particular, a manifestação da condição pode ser atípica, sem dor abdominal nem febre. Os exames laboratoriais comumente mostram leucocitose e aumento dos níveis de enzimas hepáticas e amilase sérica. A bacteremia, que pode ser polimicrobiana, ocorre em até 1/4 dos casos.
Os abscessos intra-abdominais caracteristicamente contêm múltiplas espécies de bactérias. As bactérias anaeróbicas podem ser isoladas a partir de 60 a 70% destes abscessos. Entre as bactérias mais comumente isoladas, estão B. fragilis, peptoestreptococos e peptococos, espécies de Clostridium, além de espécies facultativas, como E. coli, Enterobacter, Klebsiella e enterococos. Os organismos específicos isolados em geral não fornecem indícios da natureza do processo subjacente. Contudo, a presença de espécies de Citrobacter é fortemente sugestiva da existência de uma fonte biliar ou gastrintestinal superior. O isolamento de S. aureus, que é incomum nos abscessos intra-abdominais, sugere a ocorrência de osteomielite vertebral ou semeadura bacterêmica, que podem levar à formação de abscessos retroperitoneais ou perinéfricos.
As radiografias (rins, ureteres e bexiga [RUB]; vistas em posição vertical e decúbito lateral) podem fornecer indícios importantes para o diagnóstico dos abscessos intra-abdominais. Os níveis ar-líquido, por exemplo, podem indicar a existência de uma coleção intra-abdominal; a presença de ar livre pode apontar uma perfuração visceral como sendo o problema subjacente; alças intestinais deslocadas podem indicar um abscesso; e o aspecto conhecido como “bolha de sabão” ou a perda da sombra natural do psoas podem sugerir a existência de uma coleção retroperitoneal.
A ultrassonografia e a TC, porém, são significativamente mais sensíveis e específicas do que a radiografia e atualmente são consideradas as técnicas radiológicas padrão para avaliação de abscessos intra-abdominais.56 Ambas são excelentes para fins diagnósticos e podem ser usadas para guiar a drenagem do abscesso por via percutânea [ver Tratamento e prevenção, adiante].57 A TC é o exame mais acurado – suas taxas de especificidade e sensibilidade podem ultrapassar 90%. Comparada à ultrassonografia, a TC tem como vantagens a possibilidade de administração simultânea de contraste, a ausência de necessidade de contato cutâneo (os curativos cirúrgicos consequentemente não interferem no exame) e o fornecimento de resultados acurados até mesmo em casos de íleo paralítico e na presença de coleções de gases abdominais. Contudo, a ultrassonografia é mais econômica, é mais prontamente disponível, pode ser realizada com equipamento portátil à beira do leito e não envolve exposição à radiação. A ultrassonografia é mais acurada para a detecção de abscessos localizados no quadrante superior esquerdo ou direito do abdome, bem como na pelve. É igualmente sensível e específica para a identificação de ascite. Em pacientes com doença abdominal aguda, porém, a ultrassonografia frequentemente é limitada pelos gases intestinais, que obscurecem quaisquer achados mais profundos.
A imagem de ressonância magnética (RM) exerce papel negligível na avaliação das infecções intra-abdominais. Os exames de medicina nuclear também são menos úteis do que a TC e a ultrassonografia. Apesar dos resultados iniciais aparentemente promissores, as varreduras com gálio-67 e índio-111 mostraram-se menos úteis do que as técnicas de TC e ultrassonografia. As varreduras de colecintigrafia usando ácido hepatoiminoacético (HIDA ou lidofenina) marcado com tecnéscio-99m são úteis para avaliar a vesícula biliar e demonstrar vazamentos de bile subsequentes à colecistectomia ou outros procedimentos biliares [ver Cálculos biliares e doença do trato biliar]. A arteriografia e os exames com contraste de bário raramente são usados para diagnosticar abscessos intra-abdominais. Havendo tratos fistulosos, porém ocasionalmente podem ser úteis.

Tratamento e prevenção

A escolha dos antibióticos depende dos organismos isolados a partir das hemoculturas ou do material extraído dos abscessos. Até a disponibilização desta informação, a escolha dos fármacos deve ser guiada pelos mesmos princípios aplicáveis ao tratamento da peritonite. Embora o uso dos antibióticos seja essencial, sobretudo devido ao risco de bacteremia, esta terapia isolada não consegue erradicar os abscessos intra-abdominais e, portanto, é secundária a uma drenagem imediata e efetiva destas formações.
Até a metade da década de 1970, a drenagem cirúrgica era considerada obrigatória para o tratamento de abscessos intra-abdominais. Contudo, o tratamento sofreu mudanças dramáticas em apenas alguns anos, com a introdução da drenagem percutânea de abscessos guiada por ultrassom ou TC. A ultrassonografia pode ser usada para guiar a drenagem de coleções amplas ou superficiais, mas a TC é preferida para abscessos menores ou mais profundos.58 Muitos estudos demonstraram que a drenagem percutânea de abscessos é uma técnica segura e efetiva para uma ampla gama de coleções intra-abdominais. As taxas de sucesso variam de 47 a 92%, e a maioria dos estudos relata taxas de sucesso superiores a 80%, similares às taxas de sucesso obtidas com a drenagem cirúrgica.59 A falha do tratamento é mais comum em pacientes imunossuprimidos e naqueles com flegmões pouco definidos, abscessos multiloculares, hematomas espessos ou infecções organizadas, ou abscessos com tratos fistulosos associados.
Apenas as características radiográficas são insuficientes para indicar quais abscessos responderão à drenagem percutânea. Assim, uma medida aparentemente razoável é instituir a drenagem percutânea em todos os casos de pacientes que possuem uma via de acesso segura, contanto que o procedimento seja realizado por funcionários capacitados e o paciente não necessite de intervenção cirúrgica. A drenagem cirúrgica, então, pode ser usada para pacientes com recidivas, insuficiências ou complicações. É necessário que um cirurgião esteja envolvido na tomada da decisão sobre o método de drenagem a ser usado, pois um cirurgião será chamado em caso de insucesso da abordagem inicial. Mesmo no caso dos abscessos que geralmente requerem intervenção cirúrgica, como os abscessos periapendiculares e diverticulares e as infecções pancreáticas (ver adiante), a drenagem percutânea permite controlar temporariamente a sepse e, com isso, adiar o procedimento operatório até que as condições ideais sejam alcançadas. Eventualmente, este procedimento permite a realização de apenas um procedimento definitivo, em vez de vários procedimentos em fases.60
Relatos recentes mostram que alguns abscessos pequenos, que podem ser diagnosticados por TC, são resolvidos apenas com terapia antibiótica e sem necessidade de drenagem cirúrgica ou percutânea. Nestes relatos, o tratamento não cirúrgico de abscessos maiores que 5 cm tendeu à falha, porém a maioria dos abscessos com este tamanho ou menores foram resolvidos apenas com tratamento antibiótico.61,62 De qualquer forma, quando há uma “janela” segura até o abscesso, bem como disponibilidade dos conhecimentos especializados necessários, uma forma de tratamento provavelmente satisfatória consiste em instalar um cateter percutâneo. Se o abscesso for pequeno, o acesso percutâneo for difícil e o paciente não estiver gravemente doente, então uma abordagem lógica é iniciar um curso de antibióticos e acompanhar a evolução do paciente. Se o abscesso aumentar de tamanho, uma via de acesso percutânea pode ser disponibilizada. Caso o quadro do paciente piore, então uma abordagem aberta para drenagem passa a ser necessária, se o acesso percutâneo não for possível.
Existem algumas estratégias preventivas disponíveis para diminuir a probabilidade tanto de infecção da ferida (infecções no sítio de incisão cirúrgica) como de formação de abscesso intra-abdominal (infecções do sítio cirúrgico em órgão/espaço) após cirurgias abdominais.63 Entre estas estratégias, estão o uso profilático de antibióticos,64 a manutenção da normotermia na sala cirúrgica,65,66 o fornecimento de altos níveis de oxigênio inspirado,66-68 a ressuscitação com líquidos apropriada durante a operação,69 e a manutenção da euglicemia no período perioperatório.70-73

Abscessos intraperitoneais 

Os abscessos intraperitoneais podem ser formados de 2 maneiras: (1) a partir de uma peritonite difusa, em que há desenvolvimento de loculações de pus em áreas anatomicamente dependentes, como na pelve, goteiras paracólicas e áreas subfrênicas; ou (2) por disseminação da infecção a partir de um processo inflamatório ao peritônio contíguo. Cerca de 1/3 dos abscessos intra-abdominais são intraperitoneais, e quase a metade dos abscessos intraperitoneais ocorre junto ao quadrante inferior direito.

Abscessos subfrênicos

Cerca de 60% dos abscessos subfrênicos desenvolvem-se após cirurgias que envolvem o duodeno e o estômago, trato biliar ou apêndice; 20 a 40% dos abscessos desenvolvem-se após a ruptura de uma víscera oca (como uma apendicite aguda ou úlcera péptica perfurada), em que a infecção é subsequentemente lacrada. Um percentual variável de abscessos subfrênicos desenvolvem-se após um traumatismo abdominal penetrante ou fechado, sendo que menos de 5% se desenvolvem na ausência de condições predisponentes. O diagnóstico dos abscessos subfrênicos às vezes é adiado por causa da localização destas formações junto à porção intratorácica da cavidade peritoneal, que é inacessível pelo exame físico.

Características clínicas. As manifestações de um abscesso subfrênico variam de uma doença aguda severa a um processo crônico insidioso caracterizado por febre intermitente, perda de peso, anemia e sintomas inespecíficos. A síndrome crônica é mais frequentemente observada em pacientes previamente tratados com antibiótico. No passado, este tipo de abscesso podia permanecer subclinicamente latente por períodos prolongados, antes do diagnóstico. Isto é incomum, atualmente. Diante de qualquer paciente com febre de origem indeterminada que tenha passado por cirurgia abdominal – mesmo quando a operação foi realizada há muitos meses – deve ser levantada a suspeita de abscesso intra-abdominal e realizado um exame de TC.
Picos de febre, dor e sensibilidade abdominal (mais comumente junto à margem costal inferior), e perda de peso são manifestações comuns. As características de um processo intratorácico, como dor no ombro, dor torácica, tosse, dispneia, estertores e efusão pleural, são mais frequentemente observadas do que as características de uma condição intra-abdominal. É comum haver leucocitose. Em raros casos, os pacientes apresentam uma doença febril, obscura e prolongada, que é agravada pelo desenvolvimento repentino de um empiema quando o abscesso subfrênico se rompe através do diafragma. Embora esteja presente em cerca de 80% dos pacientes com abscesso subfrênico, o líquido pleural geralmente é um transudato. A efusão pleural que se desenvolve após uma cirurgia abdominal é mais comumente causada por uma inflamação que ocorre abaixo (e não em cima) do diafragma.

Diagnóstico. TC e ultrassonografia são as melhores técnicas radiológicas para estabelecer o diagnóstico. Os achados de uma radiografia encontrados em pacientes com abscesso subfrênico incluem derrame pleural, limitação da movimentação diafragmática, elevação de um hemidiafragma e pneumonia de lobo inferior ou atelectasia.

Abscessos retroperitoneais

As infecções piogênicas do retroperitônio manifestam-se como outras infecções intra-abdominais. De fato, muitos abscessos intra-abdominais surgem a partir de distúrbios viscerais abdominais. Mais de 2/3 dos pacientes com abscessos retroperitoneais também apresentam condições subjacentes debilitantes, tais como tumores malignos, uso de corticosteroide, alcoolismo e diabetes. Mais de 80% destas infecções são polimicrobianas, envolvendo organismos entéricos aeróbicos e anaeróbicos.74 A TC é decisiva para o diagnóstico dos abscessos retroperitoneais. Isto também é valido para os abscessos primários do psoas, que frequentemente são causados por S. aureus,75 e para os abscessos perinéfricos, que em geral se originam no trato urinário.76 Assim como em outros abscessos, o sucesso do tratamento requer drenagem percutânea ou cirúrgica imediata e administração de antibióticos adequados.76,77

Infecções pancreáticas

A maioria das infecções pancreáticas ocorre como complicação da pancreatite, que pode resultar de alcoolismo (38%), cálculos biliares (11%), traumatismo cirúrgico (16%) ou outros fatores (35%). As definições antigas de necrose peripancreática, necrose pancreática infecciosa e abscessos pancreáticos foram abandonadas por serem de difícil aplicação e pouca utilidade.78 As infecções associadas à necrose pancreática tendem a ocorrer durante as primeiras 3 semanas subsequentes ao início da pancreatite necrotizante aguda, sendo pouco localizadas junto ao retroperitônio. O controle da fonte é difícil. A morbidade e mortalidade podem ser altas. A necrose infectada muitas vezes requer desbridamento cirúrgico aberto, apesar dos relatos promissores do uso combinado de drenagem percutânea e desbridamento assistido por laparoscopia. As infecções mais localizadas tendem a ocorrer após mais de 3 semanas do início agudo da doença. As infecções localizadas tardias com frequência podem ser tratadas por via percutânea, mas ainda tendem a necessitar de um controle de foco adicional.79
As infecções pancreáticas muitas vezes são polimicrobianas, tipicamente contendo 3 a 4 espécies de bactérias. Estas são, na maioria, entéricas e incluem E. coli, enterococos, espécies de Klebsiella e micro-organismos anaeróbicos, como as espécies de Bacteroides, Peptococcus, Fusobacterium e Clostridium. Pode haver envolvimento de micro-organismos não entéricos, incluindo estafilococos, P. aeruginosa e, menos frequentemente, espécies de Candida. A bacteremia ocorre em cerca de 26% dos casos. Relatos recentes demonstram uma alteração da flora microbiana habitual da pancreatite infecciosa, com aumento da concentração de cocos gram-positivos e fungos (p. ex., espécies de Candida), provavelmente secundário ao uso cada vez mais comum de antibióticos profiláticos por períodos prolongados em casos de pacientes com pancreatite necrotizante.80,81 Dados recentes mostraram que a administração profilática de antibióticos em pacientes com pancreatite necrotizante ainda não infectados é inefetiva para a prevenção de infecções pancreáticas e peripancreáticas.82-84 Sem dúvida, as infecções pancreáticas ou extrapancreáticas, que ocorrem durante o curso de uma pancreatite aguda, devem ser diagnosticadas e tratadas quando forem detectadas.

Características clínicas. A manifestação inicial da pancreatite necrotizante aguda indiferenciada envolve febre e leucocitose, bem como dor e sensibilidade abdominais. As características clínicas não permitem diferenciar pacientes infectados e não infectados. A maioria das infecções ocorre após pelo menos 1 semana do início da doença.

Diagnóstico. O método mais acurado para determinar se uma área de necrose pancreática ou peripancreática está infectada é realizar a aspiração com agulha fina guiada por TC, seguida de coloração de Gram e cultura. Esta etapa é indicada se a condição do paciente sofrer deterioração após uma estabilização ou melhora inicial.85

Tratamento. O controle do foco é obrigatório. Este controle frequentemente pode ser feito por desbridamento cirúrgico aberto, às vezes auxiliado por drenagem percutânea, técnicas laparoscópicas ou ambas.86 O resultado melhora quando a intervenção é feita mais tardiamente no curso da doença. A terapia antibiótica é a mesma empregada no tratamento de outras infecções intra-abdominais.

Abscessos viscerais

Abscessos hepáticos

Epidemiologia e etiologia. Os abscessos hepáticos piogênicos ocorrem em diversos contextos, tais como infecção do trato biliar, extensão direta a partir de um sítio contínuo de infecção, bacteremia do sistema portal a partir de focos sépticos intra-abdominais e traumatismo não penetrante.87-89 Os abscessos hepáticos podem ocorrer como resultado de bacteremia sistêmica ou como complicações de uma cirurgia abdominal ou traumatismo abdominal penetrante. Estes abscessos também podem ocorrer como complicações do carcinoma hepatocelular,90 doença granulomatosa crônica,91,92 ou procedimentos de drenagem biliar trans-hepática percutânea realizados em pacientes com câncer e icterícia obstrutiva. Os abscessos piogênicos podem ser únicos ou múltiplos.
Assim como outros abscessos intra-abdominais, os abscessos hepáticos piogênicos envolvem principalmente bactérias entéricas. Um total de 2/3 destes abscessos têm origem polimicrobiana, enquanto pelo menos 1/3 envolvem micro-organismos anaeróbicos. S. aureus pode ser o organismo causador em pacientes com bacteremia e em crianças. As espécies de Klebsiella frequentemente são responsáveis pelos abscessos hepáticos formadores de gases, que de forma típica ocorrem em pacientes diabéticos.93 As hemoculturas são positivas em cerca de metade dos pacientes com abscesso hepático piogênico. Além disso, existe a possibilidade de ocorrer infecções metastáticas.

Aspectos clínicos. A febre é o sintoma mais comum e está presente em quase 90% dos pacientes. Calafrios e perda de peso ocorrem em cerca de metade dos casos. Como a dor abdominal, sensibilidade abdominal ou hepatomegalia são encontradas em apenas 50% dos casos; muitos destes pacientes apresentam febre de origem indeterminada. A leucocitose está presente na maioria dos casos. A icterícia é incomum, mas os níveis séricos de fosfatase alcalina estão elevados em quase todos os pacientes. A ruptura de um abscesso hepático, ainda que seja incomum, frequentemente é acompanhada de dor abdominal difusa e choque séptico.94

Diagnóstico. A TC é a técnica diagnóstica mais acurada [Figura 1], com um rendimento de resultados positivos em até 95% dos casos confirmados. A ultrassonografia também é útil e fornece resultados positivos em até 80% dos casos confirmados. O indício inicial para determinação do diagnóstico pode ser obtido com radiografias simples, que podem mostrar uma elevação do hemidiafragma direito, derrame pleural de lado direito ou nível ar-líquido.

Figura 1. Tomografia computadorizada (TC) (a) mostrando um abscesso hepático multilobular (seta). Decorridos 4 dias da drenagem percutânea do abscesso, a TC (b) mostrou a resolução da cavidade do abscesso.

O principal diagnóstico diferencial é o abscesso hepático amébico [ver Infecções por protozoários]. Os abscessos amébicos tendem mais a ser solitários e confinados ao lobo direito do fígado. Uma história de viagem ou diarreia pode sugerir o diagnóstico. O exame de fezes para pesquisa de ovos e parasitas que revela a presença de Entamoeba histolytica é altamente sugestivo, porém os resultados muitas vezes são negativos em casos de pacientes com amebíase hepática. Entretanto, a maioria dos pacientes com abscessos hepáticos amébicos apresenta sorologia amébica positiva. É importante notar que E. histolytica foi reclassificada em 2 espécies morfologicamente similares, porém geneticamente distintas: E. histolytica, que é o protozoário patogênico causador da disenteria amébica e do abscesso hepático; e Entamoeba dispar, que é um protozoário não patogênico comensal de seres humanos. Recomenda-se realizar o teste sorológico específico à base de ensaio imunossorvente ligado à enzima (ELISA), utilizado para distinguir entre a colonização por E. dispar e a colonização por E. histolytica, antes de tratar a amebíase.95,96 Menos frequentemente, os cistos hepáticos ou neoplasias podem ser confundidos com abscessos hepáticos.

Tratamento. Enquanto a cirurgia antigamente era considerada a base da terapia, a drenagem percutânea agora deve ser o procedimento de drenagem inicial para a maioria dos pacientes com abscessos hepáticos piogênicos. Os antibióticos com ampla cobertura contra organismos entéricos e estafilococos devem ser administrados por via endovenosa até que os patógenos específicos tenham sido isolados a partir do abscesso ou da circulação sanguínea.97 A mortalidade depende em grande parte da doença subjacente e é mais alta entre os pacientes com câncer.98 A terapia cirúrgica é necessária em casos de rompimento de abscesso, porém a mortalidade associada é alta, aproximando-se de 44%.94

Abscessos esplênicos

Os abscessos esplênicos são incomuns.99 Diferente dos outros abscessos intra-abdominais, estes costumam ter origem bacterêmica, especialmente em pacientes com endocardite. Em outros pacientes, uma hemoglobinopatia, vasculite com infarto esplênico, traumatismo e imunossupressão podem atuar como fatores predisponentes. Febre e calafrios, além de uma dor no quadrante superior esquerdo são achados comuns. Quando o polo superior do baço é afetado, pode haver predominância de sintomas diafragmáticos, pleurais e pulmonares, contudo os sintomas peritoneais se tornam mais comuns quando o polo inferior é o sítio de infecção. Entre os organismos responsáveis, estão S. aureus, estreptococos, espécies de Salmonella e bactérias entéricas. Os fungos são importantes como causa em pacientes imunocomprometidos. A TC e a ultrassonografia são os exames radiográficos de maior utilidade. A instituição de uma terapia antimicrobiana adequada é essencial. A esplenectomia era frequentemente considerada necessária para promoção de um tratamento efetivo no passado, mas hoje há evidências indicando que a drenagem percutânea ou até mesmo apenas a terapia antibiótica podem ser suficientes em determinados casos selecionados.100 Experiência adicional se faz necessária para que o tratamento ideal destas infecções pouco comuns possa ser determinado.101

Os autores não possuem relações comerciais com os fabricantes de produtos ou prestadores de serviços mencionados neste capítulo.

quarta-feira, 26 de março de 2014

sindrome de kallmann

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Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia

Print version ISSN 0004-2730

Arq Bras Endocrinol Metab vol.52 no.1 São Paulo Feb. 2008

http://dx.doi.org/10.1590/S0004-27302008000100004 

REVISÃO

Síndrome de Kallmann: uma revisão histórica, clínica e molecular

Kallmann syndrome: a hystorical, clinical and molecular review


Rogério Silicani Ribeiro; Julio Abucham
Unidade de Neuroendocrinologia, Disciplina de Endocrinologia, Departamento de Medicina, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil
Endereço para correspondência



RESUMO
A síndrome de Kallmann (SK) é a associação de hipogonadismo hipogonadotrófico (HH) e anosmia descrita por Maestre de San Juan, em 1856, e caracterizada como condição hereditária por Franz Josef Kallmann, em 1944. Muitos aspectos de sua patogenia, variabilidade fenotípica e genotípica foram desvendados nos últimos 15 anos. Conseqüentemente, tem sido difícil manter-se atualizado frente à rapidez que o conhecimento dessa condição é gerado. Nesta revisão, resgatamos aspectos históricos pouco conhecidos sobre a síndrome e seus descobridores; incorporamos novas descobertas relacionadas à embriogênese dos neurônios olfatórios e produtores de GnRH. Esse processo é fundamental para compreender a associação de hipogonadismo e anosmia; descrevemos a heterogeneidade fenotípica e genotípica, incluindo mutações em cinco genes (KAL-1, FGFR1, PROKR2, PROK2 e NELF). Para cada gene, discutimos a função da proteína codificada na migração e maturação dos neurônios olfatórios e GnRH a partir de estudos in vitro e modelos experimentais e descrevemos características clínicas dos portadores dessas mutações.
Descritores: Hipogonadismo hipogonadotrófico; Kallmann; KAL-1; FGFR1; PROKR2; PROK2

ABSTRACT
Kallmann syndrome (KS), the association of hypogonadotropic hypogonadism and anosmia, was described by Maestre de San Juan in 1856 and characterized as a hereditary condition by Franz Josef Kallmann in 1944. Many aspects such as pathogeny, phenotype and genotype in KS were described in the last fifteen years. The knowledge of this condition has grown fast, making it difficult to update. Here we review historical aspects of this condition and its discoverers and describe new findings regarding the embryogenesis of the olfactory bulb and GnRH secreting neuronal tracts that are important for understanding the association of hypogonadism and anosmia. Additionally, we describe the phenotypic and genotypic heterogeneity of KS, including five related genes (KAL-1, FGFR1, PROKR2, PROK2 e NELF), and discuss the function of each codified protein in migration and maturation of the olfactory and GnRH neurons, with data from in vitro and in vivo studies. Finally we describe the clinical phenotype of patients carrying these mutations.
Keywords: Hipogonadismo hipogonadotrófico; Kallmann; KAL-1; FGFR1; PROKR2; PROK2



HISTÓRICO
A PRIMEIRA DESCRIÇÃO DA ASSOCIAÇÃO de hipogonadismo e anosmia foi feita, em 1856, pelo médico e professor catedrático de anatomia da Faculdade de Medicina de Granada, Aureliano Maestre de San Juan (1828 - 1890), após a autópsia de um homem de 40 anos, apresentava bulbos olfatórios ausentes e "atrofia congênita" dos testículos e pênis (1). A possibilidade de um distúrbio olfatório foi, então, retrospectivamente investigada "con el objeto de utilizar para la ciencia este notabilísimo caso, traté a toda costa de averiguar algo acerca de las facultades olfatorias de este sujeto, y afortunadamente supe por una hermana del mismo, que su hermano Antonio nunca había tenido conciencia de los cuerpos olorosos, y así que era notable el cómo podía permanecer en cualquier paraje, aunque el olor en aquel punto fuera intolerable" ("com o objetivo de utilizar para a ciência este notável caso, tratei de averiguar algo sobre as faculdades olfatórias desse sujeito e, afortunadamente, soube por sua irmã que seu irmão Antônio nunca havia percebido odores, e assim era notável como podia ficar em qualquer lugar mesmo que o odor local fosse intolerável").
Aureliano Maestre de San Juan (Figura 1) foi o primeiro de uma geração de histologistas espanhóis, dentre os quais se destacou Ramon y Cajal, pai da teoria da plasticidade neuronal. Segundo as memórias escritas por Cajal, "... o boníssimo don Aureliano, a quem tanto nós discípulos venerávamos, sucumbiu depois de um acidente de laboratório..." (com soda cáustica), o que o deixou cego, tendo morrido pobre e esquecido. A descrição inédita da associação de hipogonadismo e anosmia, publicada por Maestre de San Juan na revista espanhola "El Siglo Médico", permaneceu pouco lembrada pela literatura médica (1).




Em 1944, cerca de 80 anos depois da descrição original de Maestre de San Juan, o geneticista alemão Franz Joseph Kallmann (1897 – 1965), um estudioso do caráter hereditário da esquizofrenia e do retardo mental, descreveu três famílias com 12 indivíduos hipogonádicos, dos quais nove eram portadores de anosmia, e dois eram retardados mentais. Kallmann demonstrou o caráter genético da doença, a maior prevalência em homens bem como sua variedade fenotípica (2).
Kallmann defendia a esterilização dos esquizofrênicos como forma de melhorar a raça humana e aprimorar a sociedade. Sua teoria foi usada pelos nazistas como "embasamento científico" para perseguição e extermínio de mais de 200 mil portadores de esquizofrenia e de outras formas de retardo mental, a maioria crianças, em campos de concentração, posteriormente utilizados para o extermínio de judeus e de outras minorias raciais. Ironicamente, Kallmann, filho de mãe judaica, viu-se forçado a migrar para os Estados Unidos para não acabar nos mesmos campos de extermínio criados sob inspiração de sua própria teoria (3). A despeito disso, sua contribuição originou e consagrou o epônimo "síndrome de Kallmann" na literatura médica do pós-guerra para descrever a associação de hipogonadismo e anosmia.
Mais recentemente, em 1954, De Morsier cunhou o termo displasia olfato-genital para descrever a coexistência de hipogonadismo e anosmia em 14 indivíduos, porém, ainda hoje, a utilização do epônimo síndrome de Kallmann para descrever essa associação prevalece na literatura (4).

FISIOPATOLOGIA DA ASSOCIAÇÃO DE HIPOGONADISMO E ANOSMIA NA SK
A fisiopatologia do hipogonadismo na SK começou a ser compreendida após o desenvolvimento das dosagens de gonadotrofinas por radioimunoensaio. Bardin e cols., em 1969, demonstraram que portadores de SK apresentavam baixos níveis de gonadotrofinas e ausência de resposta ao clomifeno, um agonista estrogênico parcial que aumenta a secreção de gonadotrofinas (5). Posteriormente, Naftolin e cols. demonstraram que a infusão endovenosa do hormônio liberador das gonadotrofinas (GnRH) restaurava a secreção de gonadotrofinas em portadores de SK, caracterizando a integridade funcional dos gonadotrofos e a deficiência hipotalâmica de secreção do GnRH (6).
A anosmia está relacionada à deficiência de GnRH porque a migração e diferenciação dos neurônios secretores de GnRH dependem da formação do bulbo olfatório (Figura 2). Tanto os neurônios do bulbo olfatório quanto os neurônios secretores de GnRH se originam no epitélio nasal embrionário e migram em direção às meninges, cruzando a placa cribiforme. Logo após, os corpos dos neurônios GnRH dirigem-se para a área pré-óptica do hipotálamo, guiando-se pelas projeções hipotalâmicas dos neurônios do bulbo as quais constituem o trato olfatório (7,8). Assim, defeitos na formação do bulbo e trato olfatórios desorientam a migração e a diferenciação dos neurônios GnRH.




EPIDEMIOLOGIA E QUADRO CLÍNICO
A prevalência da SK é estimada entre 1:10.000 e 1:80.000 nos homens (9) e cerca de 1:50.000 nas mulheres (10,11). A maioria dos casos é esporádica, mas a síndrome também pode ter caráter familiar. Os homens são mais freqüentemente acometidos do que as mulheres, em uma proporção aproximada de 4:1 nos casos esporádicos e de 2:1 nos casos familiares (12).
A SK é essencialmente caracterizada pela associação de hipogonadismo e anosmia. O hipogonadismo pode ser diagnosticado logo na infância em virtude da criptorquidia e/ou micropênis ou, mais comumente, na idade puberal em virtude da falta de desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários (12). Mais raramente, alguns pacientes apresentarão reversão do hipogonadismo anos após o diagnóstico e início da reposição androgênica. Essa variante fenotípica tem sido denominada SK reversível e caracteriza-se por aumento do volume testicular, normalização dos níveis de testosterona e fertilidade após a suspensão da reposição androgênica (13-21).
O olfato dos portadores da SK pode estar totalmente ausente (anosmia) ou simplesmente reduzido (hiposmia). Os diferentes graus de comprometimento da função olfatória podem ser avaliados por meio da capacidade de reconhecer o odor de uma única substância apresentada em diferentes concentrações, como o álcool, ou da capacidade de discriminar o cheiro de substâncias distintas apresentadas em cápsulas ou cartões que exalam odor após serem abertos ou raspados como no teste de identificação de cheiros da Universidade de Pensilvânia ("UPSIT test") (22,23). Esses testes geram escores que permitem a quantificação objetiva da função olfatória. Além do comprometimento funcional, os portadores de SK freqüentemente apresentam defeitos morfológicos, como hipotrofia ou ausência do bulbo olfatório uni ou bilateral. A anatomia do bulbo olfatório pode ser mais bem avaliada por ressonância nuclear magnética de encéfalo, em T1, por intermédio de cortes coronais finos a partir da parede posterior do seio frontal até o quiasma óptico (24).
Os portadores de SK também podem apresentar outras malformações, como fenda palatina, palato ogival, agenesia renal unilateral ou bilateral (esta incompatível com a vida), sincinesia bimanual (movimentos em espelho), perda auditiva neurossensorial, daltonismo, pé cavo, déficit de aprendizagem, retardo mental, agenesia dental e defeitos da movimentação ocular (24,25).
O fenótipo reprodutivo, olfatório e as manifestações associadas podem ser diferentes em indivíduos pertencentes à mesma família, variando até mesmo entre gêmeos idênticos (26). Parentes de pacientes com SK clássica podem apresentar hipogonadismo isolado, anosmia isolada ou apenas retardo puberal, que apresenta prevalência 12 vezes maior do que na população geral (12,24,25,27).

DIAGNÓSTICO LABORATORIAL DO HIPOGONADISMO NA SK
O diagnóstico laboratorial do HH baseia-se na demonstração de níveis baixos de esteróides sexuais (testosterona no homem e estradiol na mulher) associados a níveis normais ou baixos de gonadotrofinas. A dosagem de testosterona total estabelece o diagnóstico na maioria dos casos, porém, quando os valores da testosterona total são limítrofes, pode ser necessário calcular a concentração de testosterona livre por intermédio das dosagens de testosterona total e de SHBG por radio-imunoensaio, a qual reflete melhor a fração biologicamente ativa da testosterona (28). Em mulheres, a dosagem do estradiol sérico pode ser normal ou baixa, por isso a amenorréia é um dado mais confiável que essa dosagem no diagnóstico do HH.
A ausência ou redução da resposta das gonadotrofinas ao teste agudo com GnRH confirma o diagnóstico de HH. A pulsatilidade das gonadotrofinas, avaliada por meio de dosagens seriadas, está geralmente ausente ou reduzida na SK, porém alguns indivíduos podem apresentar pulsatilidade normal e resposta das gonadotrofinas ao GnRH também normal (21,29).

GENÉTICA
A SK familiar apresenta vários padrões de herança, incluindo autossômico dominante, o mais comum, autossômico recessivo e ligado ao X, o que indica o envolvimento de diversos genes (25). Vinte por cento dos casos familiares apresentam mutações em um destes dois genes: KAL-1 (SK ligada ao X) e FGFR1 (SK autossômica dominante) (24,30). Estudos recentes identificaram três novos genes envolvidos na SK – NELF, PROKR2 e PROK2 – e demonstraram que um paciente pode apresentar mutações em mais de um desses cinco genes (31-33).

GENE KAL-1
A localização do gene KAL-1 em Xp22.3, responsável pela SK ligada ao X, foi determinada por meio de estudos citogenéticos em pacientes com síndrome de genes contíguos os quais também apresentavam hipogonadismo e anosmia associados a grandes deleções na porção distal do braço curto do cromossomo X a partir da posição Xp22.3, uma região que, na mulher, escapa à inativação (34). Em um feto de 19 semanas com uma deleção cromossômica a partir do Xp22.3, observou-se a ausência de neurônios GnRH no hipotálamo e acúmulo na meninge, em contraste com fetos normais, indicando um defeito migratório (35).
O gene KAL-1 (NCBI GeneID: 3730) foi clonado simultaneamente por dois grupos independentes (36,37). O KAL-1 possui 14 exons e codifica a anosmina-1, uma glicoproteína associada à matriz extracelular, que é expressa durante o desenvolvimento embrionário no bulbo olfatório, cerebelo, medula, rim e retina. A anosmina-1 apresenta uma região rica em cisteína, seguida por um domínio WAP (whey acidic protein-like four disulfide core), encontrado em diversos inibidores de serina-proteases, e quatro domínios FnIII (tandem fibronectin type III), homólogos aos de moléculas de adesão de células neurais com alta afinidade pelo heparan sulfato (HS) (38,39).
Estudos em cultura organotípica de neurônios olfatórios e secretores de GnRH demonstraram que a anosmina-1 tem ação quimiotáxica e direciona o crescimento dos axônios (alongamento axonal) desses neurônios. Além disso, a anosmina-1 estimula a ramificação e o desenvolvimento de neuritos axonais, o que contribui para o aumento da área de influência neuronal (38,39).
Até o momento, não foram identificados genes homólogos ao KAL-1 em ratos e camundongos, o que tem dificultado a realização de estudos in vivo para avaliar a função da anosmina-1. Em nematódeos Caenorhabiditis elegans transgênicos, a hiperexpressão do gene CeKal, homólogo ao KAL-1, induz mudanças no direcionamento do crescimento axonal e na ramificação neuronal, além de defeitos morfológicos da cabeça e cauda. A expressão de formas truncadas, sem o domínio WAP, altera o direcionamento axonal do neurônio, enquanto a expressão da forma sem os domínios FnIII altera tanto o direcionamento axonal quanto o padrão de ramificação axonal (40,41).
Recentemente, a expressão de fluoresceína nos neurônios GnRH de peixes transgênicos Medaka, transparentes durante a embriogênese, permitiu visualizar a origem olfatória dos neurônios GnRH, sua migração até à área pré-óptica ventral e o estabelecimento de conexões com a hipófise anterior. O silenciamento da expressão do gene homólogo ao KAL-1 com RNA "antisense" nesses peixes transgênicos impediu a migração e causou acúmulo dos neurônios GnRH no compartimento nasal, além de induzir defeitos na cavidade oral. Esse é o primeiro modelo experimental de SK induzido em um animal vertebrado e certamente permitirá um avanço no entendimento da SK (42).
O rastreamento de mutações no KAL-1 em portadores de SK revelou grande heterogeneidade dos defeitos moleculares, incluindo mutações missense e nonsense, mutações de junções de splicing, deleções intragênicas e deleções cromossomais submicroscópicas, localizadas ao longo de praticamente todos os exons do KAL-1. Algumas famílias com SK ligada ao X não apresentam mutações exônicas, o que pode indicar envolvimento de regiões intrônicas desse gene ou a existência de outros genes implicados nessa forma de SK (24,43,44).
O fenótipo da SK nos portadores de mutações do KAL-1 nem sempre se correlaciona com o genótipo e pode variar mesmo entre gêmeos monozigóticos que compartilham a mesma mutação (27). A maioria dos portadores de mutações do KAL-1 possui comprometimento severo da secreção de gonadotrofinas e quadro clínico evidente já ao nascimento, com criptorquidia em até 75% dos casos (12). No entanto, dois estudos diferentes descreveram indivíduos com mutação do KAL-1 e função gonadal normal (24,45). Recentemente, descrevemos o primeiro caso de SK reversível associado à mutação do KAL-1 (46).
Em mulheres portadoras de mutações do KAL-1, o fenótipo é menos severo que nos homens (12). Isso tem sido explicado pela localização do gene KAL-1 na região pseudo-autossômica do cromossomo X, a qual escapa da inativação desse cromossomo. Como as mulheres possuem duas cópias do X, a mutação em um dos alelos é compensada pelo outro alelo normal (47).
Além da variabilidade do fenótipo reprodutivo, um amplo espectro de defeitos olfatórios, anatômicos e funcionais tem sido encontrado em portadores de mutações no gene KAL-1, incluindo hipoplasia e agenesia do bulbo olfatório, uni ou bilateral, hiposmia em graus variados e anosmia. Alguns portadores de mutação do KAL-1 podem apresentar bulbos olfatórios e olfato normais (24).
Das outras manifestações associadas à SK, a sincinesia está presente em 75%, e a agenesia renal unilateral, em 30% dos portadores de SK ligada ao X, mas também podem ser encontradas, com menor prevalência, em outras formas da SK (48). Outras manifestações que podem ocorrer na SK por mutação do KAL-1 são surdez neurossensorial, palato em ogiva, pé cavo e anormalidades do movimento ocular (25).

GENE FGFR1
Assim como na SK ligada ao X, a localização de um dos genes responsáveis pela forma autossômica dominante da SK também baseou-se em estudos de portadores de síndrome de genes contíguos. Utilizando análise de segregação de marcadores polimórficos combinados com estudos de hibridização in situ, Dodé e cols. identificaram mutações na região 8p11.2-p12, que abrangia o gene FGFR1 (NCBI GeneID: 2260), em dois indivíduos apresentando SK associada à esferocitose (30).
Por intermédio do seqüenciamento de todos os exons do gene FGFR1 em 129 portadores de SK, foram encontradas mutações em heterozigose em quatro casos familiares e oito casos esporádicos, além de um indivíduo filho de pais consanguíneos apresentar mutação em homozigose. Nos indivíduos homozigóticos, a severidade da SK é maior que em indivíduos heterozigóticos. Esses achados permitiram associar as mutações do FGFR1 a uma forma autossômica dominante da SK (30). As diversas mutações identificadas na SK acarretam perda de função do FGFR1 (19,33,49-52). Em contraste, uma mutação ativadora do FGFR1 foi descrita em portadores de uma forma de craniossinostose conhecida como síndrome de Pfeiffer (53).
O gene FGFR1 é composto de 18 exons, sendo expresso em múltiplos tecidos embrionários, incluindo esqueleto, ouvido interno e porção rostral do encéfalo (17). O gene FGFR1 codifica o receptor tipo 1 do fator de crescimento do fibroblasto (FGFR1), um membro da superfamília dos receptores tirosina quinase. A estrutura do FGFR1 consiste de três domínios semelhantes a imunoglobulinas, um domínio acídico, um domínio transmembrana e dois domínios tirosina quinase (54).
O FGFR1 é ativado por alguns fatores de crescimento do fibroblasto (FGF). A ligação desses FGFs ao segundo e terceiro domínios semelhante a imunoglobulinas permite a dimerização do receptor e autofosforilação de resíduos tirosina no domínio intracelular (55). Nos neuroblastos GnRH provenientes do epitélio nasal embrionário humano, o FGF2 liga-se ao FGFR1 desencadeando a ativação de vias MAPK (mitogen-activated protein kinase). A presença de glicosaminoglicanos heparan-sulfato (HS) é fundamental para a formação do complexo FGFR1-FGF2 e ativação das vias intracelulares (56).
A anosmina-1, proteína codificada pelo KAL-1, interage com o complexo FGFR1-FGF2 como um co-ligante modulador que aumenta a quantidade de HS ligado ao complexo e amplifica a resposta das vias intracelulares (Figura 3). A formação do complexo "anosmina-1-FGFR1-FGF2-HS" permite a reorganização do citoesqueleto e o crescimento dos neuritos dos neuroblastos GnRH (56). O envolvimento do FGFR1 e da anosmina-1 em mecanismos comuns da migração e do desenvolvimento axonal dos neurônios GnRH explica a semelhança do fenótipo olfatório e reprodutivo da SK associada a mutações dos genes FGFR1 e KAL-1 (57).




A importância do FGFR1 na formação do bulbo olfatório pode ser demonstrada em camundongos transgênicos com mutação do FGFR1 restrita ao telencéfalo. Animais homozigóticos, mas não os heterozigóticos, apresentam aplasia do bulbo olfatório reproduzindo o fenótipo da SK em humanos. Esses animais morrem precocemente após o nascimento, pois a anosmia prejudica a sucção do leite materno (58).
Estudos de rastreamento genético nos portadores de SK identificaram mutações do gene FGFR1 em cerca de 6% a 8% dos casos esporádicos e até em 20% dos casos familiares. Assim como nas mutações do KAL-1, mutações do FGFR1 exibem grande heterogeneidade genotípica, fenótipo familiar variável e (33,49-52) maior severidade do fenótipo reprodutivo em relação aos pacientes com SK sem mutações nesses genes. Assim, uma alta prevalência de criptorquidia e micropênis tem sido observada em homens com mutações do FGFR1 (60% e 30%, respectivamente). Por outro lado, fenótipos reprodutivos mais leves, como retardo puberal ou anosmia isolada, são mais comuns em famílias com mutação no FGFR1 que no KAL-1 (19). Em famílias com a mesma mutação do FGFR1, o comprometimento da função gonadal é menos intenso nas mulheres do que nos homens, favorecendo a transmissão materna gene. Isso provavelmente se explica pela existência de duas cópias do gene KAL-1 nas mulheres, o que propiciaria maior concentração de anosmina-1 nas heterozigotas para o FGFR1, enquanto que os homens, que possuem apenas uma cópia do KAL-1, não disporiam desse mecanismo para compensar a haploinsuficiência do FGFR1 (57).
Embora não seja possível estabelecer uma correlação precisa entre fenótipo e genótipo na SK, pacientes com mutações do FGFR1 freqüentemente apresentam defeitos do palato e agenesia dental não descritos em portadores de mutação no KAL-1. Por outro lado, alguns pacientes com mutação no FGFR1 apresentam sincinesia bimanual, característica antes tida como exclusiva da SK ligada ao X (30,52).

GENES PROK2 E PROKR2
A identificação do envolvimento da procineticina (PROK) e seu receptor (PROKR) na SK ocorreu após a demonstração camundongos knock out para o gene da procineticina do tipo 2 (Prok2) apresentarem atrofia do bulbo olfatório e acúmulo de precursores de neurônios GnRH na região rostral da via migratória (38). Em seguida, observaram-se agenesia de bulbo olfatório, atrofia dos órgãos reprodutivos e ausência de neurônios secretores de GnRH no hipotálamo em camundongos com knock out do Prokr2, mas não do Prokr1 (30). Finalmente, mutações nos genes PROK2 e PROKR2 foram encontradas em portadores de SK (32).
O PROK2 (NCBI GeneID: 60675), um gene autossômico, localiza-se na posição 3p13, possui 13.403 pares de bases, contendo quatro exons (32), e codifica a procineticina tipo 2 (PROK2), uma proteína de 81 aminoácidos caracterizada pela presença de dez cisteínas conservadas formando cinco pontes disulfídicas e uma seqüência aminoterminal de seis aminoácidos altamente conservada (59). O PROKR2 (NCBI GeneID: 128674) localiza-se na posição 20p13, possui 1.155 pares de bases, contendo dois exons, e codifica o receptor tipo 2 da procineticina.
A PROK2 pode se ligar a dois subtipos de receptores transmembrana acoplados à proteína G, PROKR tipos 1 e 2, porém a afinidade da PROK2 para o PROKR2 é maior que a do PROK1. Em humanos, o PROKR 2 distribui-se em glândulas endócrinas – hipófise, testículos, ovário, adrenal e tiróide – e no sistema nervoso central. Além disso, os PROKR 1 e 2 são expressos no trato gastrintestinal (60).
Os receptores PROKR são acoplados a diferentes subtipos de proteína G, incluindo Gq, Gqi e Gs, o que permite ativação de diferentes vias de transdução intracelulares, inclusive a ativação de vias MAPK (60). As PROKs influenciam diversos eventos fisiológicos, como contração intestinal, hiperalgesia, espermatogênese, sobrevivência neuronal, ritmo circadiano, sono, angiogênese, comportamento alimentar e hematopoiese.
Em 192 portadores de SK (144 homens e 48 mulheres), incluindo 38 casos familiares, foram identificadas dez diferentes mutações (9 missense e 1 frameshift) no gene PROKR2 em dez casos esporádicos e em quatro famílias. Essas mutações localizavam-se nas porções intra e extracelular do receptor, bem como nos domínios da transmembrana. Ocorreram em heterozigose (dez casos), homozigose (dois casos) e heterozigose composta (dois casos), sendo que um paciente apresentou uma mutação no PROKR2 e outra no KAL-1. Curiosamente, o seqüenciamento de 500 alelos de indivíduos-controle identificou três mutações no PROKR2 (em heterozigose), duas idênticas às encontradas em pacientes com SK (em heterozigose ou em homozigose), além de uma nova mutação não observada na SK.
Nessa mesma população, o seqüenciamento do gene PROK2 identificou quatro diferentes mutações, duas em casos esporádicos e duas em famílias, sendo duas mutações missense, uma frameshift e uma causando uma troca de aminoácidos na seqüência de iniciação de tradução. Nenhuma mutação do gene PROK2 foi identificada no grupo controle (32).
É interessante notar que, além do fenótipo clássico da SK (hipogonadismo associado à anosmia), alguns portadores de mutação nos genes PROKR2 e PROK2 apresentaram hipogonadismo isolado ou anosmia isolada, e nenhum dos portadores de mutação apresentou outras manifestações comuns na SK, como sincinesia bimanual, alterações renais, agenesia dental e defeitos de face ou palato. Um dos portadores de mutação no gene PROK2 apresentava obesidade e alteração do sono, ambos severos. A importância da PROKR2 na regulação do ritmo circadiano e no comportamento alimentar já foi demonstrada em animais experimentais (32).

OUTROS GENES E DEFEITOS DIGÊNICOS NA SK
A identificação do gene NELF (NCBI GeneID 26012) e o reconhecimento de seu envolvimento no HH ocorreram a partir da análise comparativa da expressão de RNA mensageiro em neurônios GnRH ainda em migração com aqueles que já haviam completado sua migração durante a embriogênese do bulbo olfatório de camundongos. A expressão desse gene ocorria apenas durante a migração neuronal, cessando ao final do processo migratório. No camundongo, o NELF é expresso na superfície celular de neurônios olfatórios no epitélio nasal, sulco olfatório e telencéfalo, demarcando o caminho migratório dos neurônios GnRH durante o período embrionário. A interferência da expressão do gene NELF com RNA "antisense" em cultura de explantes nasais de camundongos reduz o crescimento dos axônios olfatórios e impede a migração dos neurônios GnRH (61). Em humanos, o gene NELF localiza-se na posição 9q34.3, possui 1.590 pares de bases contendo 16 exons e codifica uma proteína de 530 aminoácidos, com mais de 90% de homologia em relação aos camundongos.
Uma mutação no gene NELF (missense, sítio de splicing), em heterozigose, foi encontrada em apenas um de 32 pacientes com HH sem anosmia, mas nenhuma mutação foi observada em 33 pacientes com SK, dos quais 21 eram familiares (34). Em um estudo brasileiro recente, nenhuma mutação desse gene foi identificada em 17 pacientes com HH, incluindo 12 com SK (60).
Uma mutação do gene NELF e uma outra no FGFR1 foram identificadas em uma mesma família, cuja mãe era heterozigota para o NELF e apresentava clinodactilia e síndrome de Duane (síndrome da retração ocular), e o pai, heterozigoto para o gene FGFR1, referia retardo puberal e anosmia. Na prole, apenas o filho, que herdou ambas as mutações, apresentava SK (além de clinodactilia e defeitos de linha média); um outro filho, heterozigoto para a mutação do NELF, era eugonádico e apresentava clinodactilia; um terceiro, heterozigoto para FGFR1, também eugonádico, apenas apresentava defeitos de linha média (33,62). Em uma outra família, o pai era heterozigoto para duas mutações em genes distintos, uma no GnRHR (gene do receptor do GnRH, R262Q) e a outra no FGFR1 (R470L), tendo tido apenas retardo puberal, e a mãe era heterozigota simples para uma outra mutação no GnRHR (Q106R), sem nenhum fenótipo relacionado. Dos três filhos, duas eram heretozigotas compostas para as mutações do GnRHR e heterozigotas simples para a mutação do FGFR1, e ambas apresentavam HH sem anosmia. Essas famílias ilustram uma interessante possibilidade, a de que defeitos em mais de um gene (oligogênicos) relacionados à formação do sistema GnRH possam determinar a variação fenotípica encontrada em uma mesma família e antes denominada de "penetrância variável" de um defeito supostamente monogênico (31). Assim, nas formas oligogênicas, vários outros genes relacionados ao HH isolado sem anosmia (GnRH, GnRHR, DAX1, GPR54, LEPR) poderiam contribuir na expressão fenotípica de pacientes com SK, desde que mutações em genes envolvidos no desenvolvimento do sistema olfatório também estivessem presentes.