Peritonite
A peritonite é um processo inflamatório difuso ou localizado, que afeta o revestimento peritoneal.1,2
Existem 2 formas de peritonite, aguda e crônica, porém suas causas são
numerosas e incluem bactérias piogênicas (p. ex., Escherichia coli),
tuberculose, fungos, parasitas (como aqueles oriundos de cistos
hidáticos ou abscessos amébicos hepáticos rompidos), carcinomatose,
irritação química (como a irritação causada pela bile), reação de
hipersensibilidade farmacológica, reação a corpo estranho e algumas
doenças sistêmicas (como a febre familiar do mediterrâneo e o lúpus
eritematoso sistêmico). Somente a peritonite aguda causada por bactérias
ou fungos, incluindo as peritonites primária e secundária, será
discutida aqui. A peritonite primária, também chamada espontânea, não
está associada a nenhum distúrbio intra-abdominal subjacente como causa
direta de infecção, mas geralmente envolve um distúrbio subjacente que
inibe as defesas normais do hospedeiro na cavidade abdominal. A
peritonite secundária possui um foco intra-abdominal que inicia a
infecção. A peritonite tuberculosa é considerada em outro capítulo
[ver Tuberculose].
Peritonite bacteriana espontânea (PBE)
Epidemiologia e etiologia
A
peritonite bacteriana espontânea (PBE) vem sendo identificada com
frequência cada vez maior em pacientes com hepatopatia crônica avançada e
ascite concomitante ou insuficiência hepática fulminante acompanhada de
ascite.3,4 A hepatopatia crônica subjacente geralmente é a
cirrose alcoólica em pacientes de idade mais avançada, enquanto a
cirrose pós-necrótica predomina entre crianças e adultos jovens. A PBE é
uma condição comum e séria, que ocorre em 10 a 30% dos pacientes com
cirrose e ascite e está associada a uma mortalidade da ordem de 30 a
50%.2,5-7 O risco de PBE é maior em indivíduos cirróticos que apresentam baixos níveis de proteína na ascite (= 1 g/dL).8,9
A E. coli é a causa mais comum de PBE, sendo isolada em cerca da metade
dos pacientes. As espécies de pneumococos e estreptococos são cada uma
responsável por 15 a 20% dos casos; as espécies de Klebsiella são
responsáveis por cerca de 10% dos casos; e os organismos anaeróbicos ou
microaerófilos causam aproximadamente 5% dos casos. Staphylococcus
aureus é uma causa infrequente de PBE, mas constitui uma das principais
causas de peritonite em pacientes cirróticos com shunts peritoneovenosos
de LeVeen. Uma variedade de outros organismos, entre os quais Listeria monocytogenes, Campylobacter coli e espécies de Aeromonas, têm sido responsáveis por casos isolados de PBE.10
Na maioria dos casos em que o organismo causador é aeróbico, um único
organismo está envolvido, e a bacteremia concomitante é um achado
frequente.
Embora
a incidência de peritonite primária seja maior entre as crianças,
também pode desenvolver-se em adultos, sendo que quase todos os
pacientes adultos afetados são mulheres.11 Apesar de muitos
pacientes terem tido nefrose, a maioria não apresenta ascite
preexistente. A fonte de infecção geralmente é oculta, mas pode envolver
a flora genital feminina. Os organismos infecciosos quase sempre são
pneumococos ou estreptococos do grupo beta-hemolítico A. Os bacilos
gram-negativos raramente estão implicados. Por motivos ainda
desconhecidos, a incidência da peritonite primária sofreu uma queda
acentuada nas últimas décadas.
Ocasionalmente,
a PBE desenvolve-se em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico e
nefrite lúpica, sem ascite detectável, que na maioria dos casos estão
sob tratamento com corticosteroides. Os agentes etiológicos mais comuns
desta forma de PBE são os cocos gram-positivos, como Streptococcus pneumoniae
e estreptococos do grupo B. A via de infecção mais provável é a
semeadura bacterêmica do líquido ascítico, que pode ser precipitada por
hipertensão portal, shunt intra-hepático, supercrescimento
bacteriano intestinal e comprometimento dos mecanismos de defesa do
hospedeiro, incluindo a diminuição da atividade bactericida no líquido
ascítico.3,6 Com menos frequência, a PBE resulta da migração
transmural de bactérias entéricas (possivelmente associadas à diarreia,
que é um sintoma comum na cirrose). A hepatopatia severa, o carcinoma
hepatocelular, o sangramento gastrintestinal e um foco de infecção no
trato urinário ou em outra parte do corpo são fatores que aumentam o
risco de PBE.9,12,13 Uma paracentese prévia pode contribuir
para alguns casos. As lesões penetrantes do trato biliar, a úlcera
péptica e a inflamação intestinal evidente (como uma apendicite ou
diverticulite) aparentemente não são fontes de infecção.
Diagnóstico
Características clínicas. A manifestação clínica da PBE frequentemente é mínima.3,6,7
Embora a ascite esteja sempre presente, o volume de líquido
ocasionalmente pode ser pequeno o bastante para requerer confirmação por
ultrassonografia. A febre é o sintoma mais comum, mas está ausente em
mais de 30% dos casos. A dor abdominal e a encefalopatia hepática estão
presentes na maioria dos pacientes. Entretanto, apenas metade dos
pacientes com PBE apresentam sensibilidade abdominal, enquanto os sinais
e sintomas de infecção podem estar ausentes em até 1/3 dos casos. Desta
forma, a suspeita de PBE deve ser levantada diante de qualquer paciente
cirrótico que apresente hipotensão ou deterioração clínica
inexplicável.
Exames laboratoriais.
O principal aspecto do diagnóstico consiste em examinar o líquido
ascítico obtido por paracentese, em busca de bactérias e leucócitos. A
contagem de leucócitos polimorfonucleares (PMN) no líquido ascítico é o
melhor indicador de PBE. Embora as contagens de PMN acima de 500
células/mcL sejam consideradas específicas para PBE, contagens iguais ou
superiores a 250 células/mcL sugerem o diagnóstico de PBE e são
consideradas específicas o bastante para determinar a necessidade de
instituição de tratamento para PBE em pacientes cirróticos sem outras
evidências de infecção. Uma contagem de PMN no líquido ascítico abaixo
de 250 células/mcL exclui o diagnóstico de PBE.6,7,14 Embora
alguns estudos tenham sustentado o uso de esterase leucocitária e tiras
de nitrito para testar a presença de leucócitos no líquido ascítico, há
controvérsias quanto ao uso desta prática de detecção rápida de
cabeceira para PBE.15,16
Como
as contagens bacterianas costumam ser muito baixas, a coloração do
líquido ascítico pelo método de Gram na PBE tipicamente resulta
negativa. Entretanto, uma coloração de Gram é sempre útil, pois a
visualização de um único tipo bacteriano seria consistente com a PBE,
enquanto a presença de múltiplas formas bacterianas seria sugestiva de
peritonite secundária. Dada a baixa concentração de bactérias, o
rendimento das culturas é melhor com a inoculação de 10 a 20 mL de
líquido ascítico em uma garrafa de hemocultura ou BACTEC, junto à
cabeceira do leito.14
Três
variantes de PBE foram identificadas com base nas contagens de PMN no
líquido ascítico e culturas. Na PBE típica, a contagem de PMN é igual ou
superior a 250 células/mcL, e as culturas são positivas. Quando a
contagem de PMN é igual ou superior a 500 células/mcL, mas as culturas
são negativas, a síndrome é denominada ascite neutrofílica
cultura-negativa (ANCN). Quando a contagem de PMN é abaixo de 250
células/mcL e as culturas são positivas, a síndrome é denominada
bacteriascite (BA). As características clínicas e o prognóstico da PBE e
da ANCN são indistinguíveis, e ambas variantes devem ser tratadas do
mesmo modo. Em contraste, a BA pode ser autolimitada. Se os pacientes
forem assintomáticos, é possível monitorá-los com observação intensiva e
repetição da paracentese após 48 horas. A terapia antibiótica pode ser
iniciada, caso haja desenvolvimento de sintomas clínicos ou se a
contagem de PMN no líquido ascítico aumentar.
É
importante distinguir a PBE da peritonite secundária resultante de
doença intra-abdominal, como ocorre na perfuração visceral. Uma contagem
de leucócitos no líquido ascítico igual ou superior a 10.000/mcL é
sugestiva de peritonite secundária, do mesmo modo como a detecção de
múltiplas espécies de bactérias, organismos anaeróbicos ou fungos. Os
pacientes certamente devem ser sempre avaliados clínica e
radiologicamente, a fim de excluir a hipótese de haver um processo
intra-abdominal subjacente que possa causar peritonite secundária. A
leucocitose no sangue periférico e as hemoculturas positivas são achados
comuns tanto na PBE como na peritonite secundária.
Diagnóstico diferencial
A
peritonite bacteriana pode ser estreitamente mimetizada pela
pancreatite aguda, em particular no paciente cirrótico [ver também
Infecções pancreáticas, adiante]. A dor abdominal, febre, sensibilidade
de rebote, hipotensão e leucocitose periférica são comuns tanto na
peritonite como na pancreatite aguda. Em um paciente com pancreatite,
uma aspiração abdominal diagnóstica pode até revelar um líquido turvo,
porém esta turbidez é causada pelos glóbulos de gordura flutuantes
derivados da necrose gordurosa. Níveis séricos bastante elevados de
amilase sérica geralmente são detectados na pancreatite aguda, contudo
estes níveis altos também ocorrem na peritonite subsequente à perfuração
ou obstrução intestinal e na presença de insuficiência renal.
Em
um paciente com cirrose e ascite, algumas condições podem ser
confundidas com peritonite, tais como a úlcera péptica aguda,
colecistite, obstrução da artéria mesentérica e outros processos
intra-abdominais. Nestas circunstâncias, a paracentese é útil para se
estabelecer um diagnóstico.
A
peritonite bacteriana aguda pode ser distinguida da peritonite
tuberculosa pela observação de vários aspectos. A peritonite tuberculosa
é marcada por um curso mais indolente, ausência de leucocitose
periférica, evidência radiológica de tuberculose pulmonar e uma resposta
mononuclear no líquido peritoneal. No paciente com peritonite
tuberculosa sem cirrose nem ascite, o abdome pode exibir uma
consistência pastosa característica.
A
peritonite pode ser superficialmente sugerida pela dor abdominal da
porfiria aguda, pela cólica plúmbica, pela acidose diabética e pela
crise tabética, mas os outros aspectos destas doenças servem para
distingui-las da peritonite. Os sinais e sintomas da febre mediterrânea
familiar – temperatura alta, dor abdominal, defesa muscular abdominal e
leucocitose periférica – podem sugerir uma peritonite bacteriana. A
periodicidade da febre familiar do mediterrâneo e sua ocorrência de
forma predominante em descendentes de sefardi, armênios e árabes são
úteis para diferenciá-la da peritonite bacteriana.
Pode
ser difícil diagnosticar a PBE em um paciente com lúpus eritematoso
sistêmico que apresente dor abdominal e febre. Estes sintomas podem ter
origem em uma variedade de problemas cirúrgicos independentes (p. ex.,
úlcera perfurada, obstrução intestinal e oclusão mesentérica) que
precisam ser distinguidos dos problemas abdominais diretamente
relacionado ao lúpus, como a vasculite, pancreatite secundária à
vasculite ou terapia com corticosteroide, e PBE. O exame do líquido
peritoneal obtido por paracentese, culdocentese ou durante a
laparoscopia pode ser a única forma de determinar a ocorrência da
peritonite bacteriana.
Tratamento
Até
a disponibilização dos resultados da cultura, o paciente deve receber
uma cobertura ampla dirigida contra os organismos entéricos. Os fármacos
nefrotóxicos, incluindo os aminoglicosídeos, devem ser evitados sempre
que possível.17 O cefotaxime (2 g, via endovenosa, a cada 8
horas) emergiu como agente favorito para uso no tratamento empírico da
PBE. Entre os agentes alternativos úteis estão o ceftriaxone,
ceftazidime, cefonicida, ceftizoxime, ampicilina-sulbactam, meropenem e
imipenem-cilastatina, além das fluoroquinolonas (isto é,
ciprofloxacina, levofloxacina, gatifloxacina e moxifloxacina).6,7
Tradicionalmente, os antibióticos endovenosos são administrados durante
10 a 14 dias. Entretanto, a terapia com duração de 5 dias parece ser
igualmente efetiva, desde que o paciente apresente uma evolução clínica
satisfatória e seu líquido ascítico esteja estéril, com uma contagem de
PMN < 250 células/mcL antes da descontinuação dos antibióticos.6,7,18,19
A
insuficiência renal, associada ao desenvolvimento da síndrome
hepatorrenal em pacientes com cirrose avançada, é uma complicação
frequente da PBE.20 As perturbações funcionais vasculares que
resultam em vasodilatação periférica e vasoconstrição renal
provavelmente são responsáveis.21 As infusões de albumina
(1,5 g/kg no momento do diagnóstico; e 1 g/kg no dia 3) podem diminuir
substancialmente a incidência de insuficiência renal e a mortalidade
entre os pacientes com PBE.22,23
Profilaxia.
Como os pacientes cirróticos apresentam risco aumentado de
desenvolvimento de PBE primária, em especial aqueles com baixa
concentração de proteínas no líquido ascítico, e porque as recidivas são
observadas em 43% destes pacientes em um período de 6 meses e em 69%
dentro de um período de 1 ano após o episódio inicial de PBE, os regimes
de profilaxia primária e secundária atualmente são recomendados para
certos subgrupos de pacientes.24 Em pacientes cirróticos sem
sangramento e com ascite persistente após um episódio inicial de PBE, a
profilaxia secundária contínua com norfloxacina oral (400 mg/dia) ou
ciprofloxacina (750 mg/semana) atualmente são recomendadas.25
Os agentes antimicrobianos orais alternativos para uso profilático
incluem a ciprofloxacina, levofloxacina, trimetoprima-sulfametoxazol e
amoxilina-clavulanato. Em pacientes cirróticos com hemorragia no trato
gastrintestinal superior, recomenda-se a profilaxia primária com
norfloxacina oral (400 mg/12 horas) ou a terapia sistêmica alternativa
(ciprofloxacina, levofloxacina, ampicilina-sulbactam), por um período
mínimo de 7 dias. A profilaxia primária com norfloxacina ou outra
fluoroquinolona também deve ser considerada para pacientes cirróticos
com baixa concentração de proteínas no líquido ascítico (isto é, <
1,5 g/L).6,7,26-28 A profilaxia apropriada não só diminui a
incidência de PBE como também retarda a síndrome hepatorrenal e melhora a
sobrevida geral.24,29
Peritonite secundária
Etiologia
A
peritonite secundária ocorre como complicação de uma doença
intra-abdominal. Pode resultar de apendicite, diverticulite, feridas
abdominais penetrantes, trauma fechado no abdome, perfuração do trato
gastrintestinal (p. ex., por úlcera péptica ou neoplasia intestinal) ou
ruptura de um abscesso intra-abdominal. A peritonite secundária pode ser
dividida em casos espontâneos, que são causados por uma doença
subjacente (p. ex., apendicite ou diverticulite), e casos resultantes de
rompimento visceral incorridos de cirurgia, procedimento ou episódio de
traumatismo.30 A maioria destas infecções é polimicrobiana.
Os patógenos incluem tanto espécies anaeróbicas (principalmente
Bacteroides fragilis, peptococos e peptoestreptococos) como espécies
aeróbicas (E. coli, espécies de Proteus, espécies de Klebsiella e vários
estreptococos e enterococos).31 A bacteremia – que ocorre em
apenas 20 a 30% dos casos – é mais comumente causada por E. coli,
espécies de Bacteroides, ou ambas.32-34 O prognóstico da
peritonite secundária depende da causa subjacente e da resposta
fisiológica do paciente à infecção. A mortalidade é menor entre os
pacientes com apendicite ou úlcera duodenal perfurada (10%), e maior
entre aqueles com outros processos intra-abdominais (50%) ou peritonite
pós-operatória (60%). Tanto a mortalidade como a probabilidade de
complicações, incluindo a necessidade de uma 2ª operação, aumentam
conforme a resposta fisiológica do paciente à doença se torna mais
intensa. Esta relação pode ser mais facilmente avaliada utilizando o
sistema de escore Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II
(APACHE II).32,33
“Peritonite
terciária” é um termo relativamente novo, que se refere à persistência
da infecção intra-abdominal após o tratamento médico-cirúrgico inicial
da peritonite secundária.35 Na discussão sobre peritonite
terciária, nem todos os autores concordam quanto à definição desta
síndrome. Em um caso típico de peritonite terciária, a exploração
operatória realizada em um paciente com sinais e sintomas de peritonite
após ter recebido tratamento prévio para peritonite revelará a
existência de inflamação e crescimento bacteriano, apesar da ausência de
um foco de infecção contínua, como uma víscera perfurada, tecido
gangrenoso ou abscesso. Os organismos recuperados tendem a ser
considerados não patogênicos e a serem atípicos da flora entérica. A
peritonite terciária pode ser considerada evidência de um tipo de falha
das defesas do hospedeiro.
Diagnóstico
Os
aspectos clínicos da peritonite secundária incluem mais comumente os
sinais peritoneais, como defesa muscular involuntária, sensibilidade à
percussão e dor abdominal. Pode haver distensão abdominal. O abdome
frequentemente não é silenciosoE é comum haver febre e leucocitose. A
presença de ar livre pode ou não ser visualizada nas radiografias
abdominais. Um ultrassom ou tomografia computadorizada (TC) mostrando a
presença de gases ou líquido livre associados a um quadro clínico
compatível confirmam o diagnóstico. Quando o diagnóstico é clinicamente
evidente, os exames radiológicos são desnecessários.
Na
ausência de ascite, o peritônio apresenta uma capacidade notável de
conter e localizar a infecção a uma parte do abdome. Assim, em situações
como a ruptura do apêndice, há desenvolvimento de uma peritonite
localizada que resulta na formação de um abscesso periapêndice ou
pélvico [ver Abscessos intra-abdominais, adiante].
Tratamento
A
peritonite secundária à perfuração intestinal, apêndice gangrenoso
rompido ou traumatismo penetrante requer intervenção cirúrgica imediata,
além de terapia antimicrobiana. A terapia cirúrgica para controle do
foco deve ser direcionada para a correção da doença subjacente,
desbridamento de tecidos circundantes e prevenção de infestação
microbiana recorrente. Para tanto, geralmente é necessário realizar
drenagem, ressecção, exclusão ou sutura da víscera envolvida durante a
laparotomia ou laparoscopia. A lavagem intraoperatória com salina e o
desbridamento peritoneal radical não se mostraram úteis. A lavagem
peritoneal pós-operatória e a laparotomia repetida planejada foram
sugeridas, mas não melhoram o resultado e acabam levando a novas
cirurgias, internações mais prolongadas e custos maiores do que com a
adoção de uma estratégia de reoperação “sob demanda”.36,37
Cerca
de 20 a 30% dos pacientes que necessitam de operação para tratamento da
peritonite ou de um abscesso intra-abdominal terão de se submeter a um
2º procedimento cirúrgico para resolver a infecção e estabelecer um
controle do foco adequado.38 As avaliações realizadas pelos
cirurgiões sobre a adequação do controle do foco alcançado com o
procedimento operatório original têm se mostrado fortemente preditivas
da necessidade subsequente de reoperação e da mortalidade do paciente.39
A
escolha de um agente antimicrobiano depende dos organismos envolvidos
na peritonite. A seleção inicial, todavia, é sempre feita antes da
disponibilização dos resultados da cultura e deve considerar os
organismos predominantes no cólon: B. fragilis, bacilos gram-negativos,
estreptococos e enterococos. Estudos de experimentação animal e a
experiência clínica demonstraram a importância do uso de antibióticos
que sejam efetivos tanto contra bactérias aeróbicas como contra
bactérias anaeróbicas no tratamento de pacientes com peritonite
polimicrobiana. Contudo, os estudos clínicos falharam em estabelecer a
superioridade de qualquer regime em particular. Os antibióticos mais
modernos, que fornecem um amplo espectro de cobertura contra numerosas
espécies aeróbicas e anaeróbicas, muitas vezes possibilitam a
instituição de terapias com um único antibiótico. Muitos especialistas
acreditam que é útil distinguir entre as infecções intra-abdominais
adquiridas na comunidade, como apendicite e diverticulite, e aquelas
adquiridas no contexto do tratamento de saúde, como a peritonite
pós-operatória decorrente de vazamento anastomótico ou abscesso
subfrênico pós-operatório. Entre os agentes considerados úteis para o
tratamento das infecções adquiridas na comunidade, estão a
ticarcilina-ácido clavulânico, cefoxitina, piperacilina-tazobactam,
ertapenem, meropenem, doripenem, moxifloxacina, tigeciclina e
imipenem-cilastatina. Os regimes multifármacos efetivos incluem o uso da
quinolona ou de uma cefalosporina de 3ª geração combinado ao
metronidazol. Para as infecções intra-abdominais adquiridas no contexto
do tratamento de saúde, muitos recomendam usar um carbapenêmico,
piperacilina-tazobactam, ou ceftazidime ou cefepime combinado ao
metronidazol. A terapia com aminoglicosídeo geralmente é reservada para
as situações em que há altas taxas de organismos resistentes de
Pseudomonas aeruginosa ou Enterobacteriaceae produtora de betalactamase
de espectro estendido (ESBL - extended spectrum blactamase),
espécies de Acinetobacter ou outros bacilos gram-negativos com
resistência a múltiplos fármacos. É preciso considerar sempre a
possibilidade de infecção por Staphylococcus aureus resistente à
meticilina (SARM) no contexto das infecções associadas ao tratamento de
saúde, sendo que o uso empírico antecipado de vancomicina pode ser útil
até a disponibilização dos resultados da cultura [ver Terapia
antimicrobiana]. Embora múltiplos fármacos forneçam um espectro de
cobertura antimicrobiana maior, tais agentes não parecem ser mais
efetivos do que os regimes com um único fármaco. Em todos os casos, a
escolha final dos antibióticos deve ser determinada pelos resultados da
cultura e do teste de sensibilidade, bem como pelo curso clínico.
A
maioria dos antibióticos alcança concentrações no líquido ascítico que
equivalem a pelo menos a metade dos níveis encontrados simultaneamente
no soro e que excedem a concentração inibitória mínima para o organismo
infectante. Por este motivo, a terapia sistêmica isolada geralmente é
adequada para o tratamento da peritonite bacteriana em pacientes com
ascite. A instilação intraperitoneal de antibióticos aparentemente é
desnecessária. São raros os estudos realizados de forma sistemática
sobre a duração requerida do curso de antibiótico. Para a maioria dos
pacientes, os agentes antimicrobianos podem ser descontinuados assim que
os sinais clínicos de infecção começam a se resolver, e a temperatura e
contagem de leucócitos sanguíneos começam a voltar ao normal. Os
pacientes em geral não requerem mais de 7 dias de tratamento, sendo que
muitos podem ser tratados por períodos menores.40-42
Peritonite em pacientes de diálise
Epidemiologia
A
infecção continua sendo um problema importante para os pacientes em
tratamento com diálise peritoneal. A peritonite desenvolve-se em até 60%
dos pacientes submetidos à diálise peritoneal ambulatória contínua,
ainda no 1º ano de tratamento, e 20 a 30% destes pacientes apresentam
recidivas da infecção. Os pacientes idosos são os mais vulneráveis.43
Diagnóstico
Características clínicas.
A peritonite é indicada pelo desenvolvimento de febre, sensibilidade ou
dor abdominal e leucocitose, e pelo isolamento de um agente bacteriano
ou micótico a partir do líquido efluente de um paciente sob diálise
peritoneal. O isolamento de bactérias a partir do dialisado de um
paciente que não apresenta estes achados frequentemente sinaliza a
ocorrência de contaminação, e não de infecção. A turbidez do dialisado
pela presença de neutrófilos é observada em 2 a 3% das diálises. Embora a
turbidez em si não necessariamente indique a existência de peritonite,
deve ser considerada uma indicação de infecção até a disponibilização
dos resultados da cultura. Entretanto, a ausência de bactérias ao exame
de uma amostra de sedimento de dialisado corada pelo método de Gram não
necessariamente confirma a ausência de infecção, dada a necessidade de
diluições extensivas da amostra. Sendo assim, não é possível se basear
em um resultado negativo da coloração de Gram para discriminar entre
infecção e inflamação estéril.43
Bacteriologia.
Na peritonite, os principais organismos a causarem complicação na
diálise peritoneal são os estafilococos coagulase-negativos, S. aureus,
P. aeruginosa, E. coli e outros organismos entéricos, além de espécies
de Candida.43-45 A internação recente constitui um dos
principais fatores de risco de desenvolvimento de peritonite associada à
diálise causada por espécies bacterianas resistentes a antibióticos,
incluindo SARM.46 Os organismos que menos comumente causam
peritonite em indivíduos submetidos à diálise peritoneal incluem os
bolores (p. ex., zigomicetos) e as micobactérias não tuberculosas
(atípicas).47,48 Os micro-organismos podem entrar na cavidade
peritoneal exogenamente (ou seja, após a colonização da área da ferida
abdominal ou por contaminação do dialisado) ou endogenamente (isto é,
por bacteremia ou migração transmural da flora intestinal, talvez
intensificada por um traumatismo induzido por cateter). A maioria dos
episódios é monomicrobiana, mas também pode ocorrer peritonite
polimicrobiana.49,50 A falha em responder à terapia
antibiótica dentro de 96 horas com frequência sinaliza a ocorrência de
infecção por bacilos gram-negativos (tipicamente, P. aeruginosa). O
prognóstico destes pacientes é pior do que o prognóstico dos pacientes
que respondem rapidamente. Pode ser necessário remover o cateter de
diálise para controlar a infecção.
Tratamento
A
peritonite causada por espécies de Candida é mais frequentemente uma
complicação da diálise peritoneal, cirurgia gastrintestinal ou
perfuração de víscera abdominal. A peritonite por Candida que agrava a
diálise peritoneal é tratada com anfotericina B endovenosa ou
intraperitoneal, ou ambas, a uma concentração final no dialisado de 2 a 4
mcg/mL. O fluconazol também pode ser útil para o tratamento da
peritonite causada por Candida albicans, assim como uma equinocandina
(p. ex., caspofungina).43,51
Enquanto
a adição de lavagem peritoneal, com ou sem antibióticos, aparentemente
não melhora os resultados promovidos pelos antibióticos endovenosos e
pela terapia cirúrgica convencional, a administração intraperitoneal de
antibióticos pode ser útil em casos de pacientes que necessitam de
diálise peritoneal. Exemplificando, é possível adicionar diferentes
antibióticos diretamente ao dialisado, em concentrações específicas,
como 50 mg de ampicilina/L ou 5 a 10 mg de gentamicina/L. Dada a
possibilidade de ocorrer bacteremia, os antibióticos também devem ser
administrados por via endovenosa nestes pacientes, em uma dosagem
adequada ao nível de função renal. Quando a peritonite se desenvolve
como complicação da diálise peritoneal ou de um shunt peritoneovenoso,
seu controle frequentemente requer a remoção ou substituição do cateter
durante a administração de antibióticos.43,51 Em pacientes
com história de peritonite causada por S. aureus, a profilaxia com uso
tópico de pomada à base de mupirocina (aplicada nas narinas), uso tópico
de creme de gentamicina (aplicado no local de saída do cateter) ou
administração oral de rifampina pode diminuir a incidência de episódios
subsequentes de peritonite estafilocócica e perda de cateter peritoneal.43,51-54
Além disso, para a colocação do cateter de diálise peritoneal, a
profilaxia antibiótica endovenosa pré-operatória diminui o risco de
peritonite, mas não afeta a incidência de infecção junto ao túnel ou
saída do cateter.55
Abscessos intra-abdominais
Os
abscessos intra-abdominais podem manifestar-se como complicações de uma
cirurgia abdominal, de condições intra-abdominais (p. ex.,
diverticulite, apendicite, doença no trato biliar, pancreatite,
perfuração visceral, peritonite) ou de um traumatismo abdominal
penetrante; como febre de origem indeterminada; ou como disfunção de
órgãos adjacentes (p. ex., a conhecida pneumonia de lobo inferior
associada a um abscesso subfrênico ou à obstrução do intestino delgado).
A disseminação bacterêmica da infecção a partir de um foco distante
para um sítio intra-abdominal é menos comum como causa de abscessos
intra-abdominais.
Os
abscessos intra-abdominais são convenientemente classificados de acordo
com a localização anatômica em que ocorrem: intraperitoneal,
retroperitoneal ou visceral. Os abscessos intraperitoneais são áreas de
peritonite localizada em que a infecção progride, mas é fisicamente
contida pelo omento, peritônio e vísceras adjacentes. As infecções
retroperitoneais incluem as infecções associadas à pancreatite,
abscessos perinéfricos e abscessos paravertebrais. Os abscessos
viscerais desenvolvem-se junto às vísceras abdominais – de modo
predominante no fígado e muitas vezes no baço – e outros órgãos. De modo
geral, a localização do abscesso geralmente não afeta o diagnóstico nem
o tratamento, exceto pela influência na escolha entre as formas
percutânea ou cirúrgica de drenagem.
Abordagem geral de abscessos intra-abdominais
Diagnóstico
Embora
a localização dos abscessos determine suas características
particulares, muitas infecções intra-abdominais compartilham alguns
elementos comuns. A febre, por exemplo, é quase invariável e muitas
vezes recorre em picos, podendo ser acompanhada de calafrios. Pode haver
desenvolvimento de hipotensão e até de choque séptico. A dor abdominal é
um dos principais indícios da presença de um abscesso intra-abdominal, e
sua ausência pode dificultar bastante o diagnóstico. Em pacientes
geriátricos, em particular, a manifestação da condição pode ser atípica,
sem dor abdominal nem febre. Os exames laboratoriais comumente mostram
leucocitose e aumento dos níveis de enzimas hepáticas e amilase sérica. A
bacteremia, que pode ser polimicrobiana, ocorre em até 1/4 dos casos.
Os
abscessos intra-abdominais caracteristicamente contêm múltiplas
espécies de bactérias. As bactérias anaeróbicas podem ser isoladas a
partir de 60 a 70% destes abscessos. Entre as bactérias mais comumente
isoladas, estão B. fragilis, peptoestreptococos e peptococos, espécies
de Clostridium, além de espécies facultativas, como E. coli,
Enterobacter, Klebsiella e enterococos. Os organismos específicos
isolados em geral não fornecem indícios da natureza do processo
subjacente. Contudo, a presença de espécies de Citrobacter é fortemente
sugestiva da existência de uma fonte biliar ou gastrintestinal superior.
O isolamento de S. aureus, que é incomum nos abscessos
intra-abdominais, sugere a ocorrência de osteomielite vertebral ou
semeadura bacterêmica, que podem levar à formação de abscessos
retroperitoneais ou perinéfricos.
As
radiografias (rins, ureteres e bexiga [RUB]; vistas em posição vertical
e decúbito lateral) podem fornecer indícios importantes para o
diagnóstico dos abscessos intra-abdominais. Os níveis ar-líquido, por
exemplo, podem indicar a existência de uma coleção intra-abdominal; a
presença de ar livre pode apontar uma perfuração visceral como sendo o
problema subjacente; alças intestinais deslocadas podem indicar um
abscesso; e o aspecto conhecido como “bolha de sabão” ou a perda da
sombra natural do psoas podem sugerir a existência de uma coleção
retroperitoneal.
A
ultrassonografia e a TC, porém, são significativamente mais sensíveis e
específicas do que a radiografia e atualmente são consideradas as
técnicas radiológicas padrão para avaliação de abscessos
intra-abdominais.56 Ambas são excelentes para fins
diagnósticos e podem ser usadas para guiar a drenagem do abscesso por
via percutânea [ver Tratamento e prevenção, adiante].57 A TC é
o exame mais acurado – suas taxas de especificidade e sensibilidade
podem ultrapassar 90%. Comparada à ultrassonografia, a TC tem como
vantagens a possibilidade de administração simultânea de contraste, a
ausência de necessidade de contato cutâneo (os curativos cirúrgicos
consequentemente não interferem no exame) e o fornecimento de resultados
acurados até mesmo em casos de íleo paralítico e na presença de
coleções de gases abdominais. Contudo, a ultrassonografia é mais
econômica, é mais prontamente disponível, pode ser realizada com
equipamento portátil à beira do leito e não envolve exposição à
radiação. A ultrassonografia é mais acurada para a detecção de abscessos
localizados no quadrante superior esquerdo ou direito do abdome, bem
como na pelve. É igualmente sensível e específica para a identificação
de ascite. Em pacientes com doença abdominal aguda, porém, a
ultrassonografia frequentemente é limitada pelos gases intestinais, que
obscurecem quaisquer achados mais profundos.
A
imagem de ressonância magnética (RM) exerce papel negligível na
avaliação das infecções intra-abdominais. Os exames de medicina nuclear
também são menos úteis do que a TC e a ultrassonografia. Apesar dos
resultados iniciais aparentemente promissores, as varreduras com
gálio-67 e índio-111 mostraram-se menos úteis do que as técnicas de TC e
ultrassonografia. As varreduras de colecintigrafia usando ácido
hepatoiminoacético (HIDA ou lidofenina) marcado com tecnéscio-99m são
úteis para avaliar a vesícula biliar e demonstrar vazamentos de bile
subsequentes à colecistectomia ou outros procedimentos biliares [ver
Cálculos biliares e doença do trato biliar]. A arteriografia e os exames
com contraste de bário raramente são usados para diagnosticar abscessos
intra-abdominais. Havendo tratos fistulosos, porém ocasionalmente podem
ser úteis.
Tratamento e prevenção
A
escolha dos antibióticos depende dos organismos isolados a partir das
hemoculturas ou do material extraído dos abscessos. Até a
disponibilização desta informação, a escolha dos fármacos deve ser
guiada pelos mesmos princípios aplicáveis ao tratamento da peritonite.
Embora o uso dos antibióticos seja essencial, sobretudo devido ao risco
de bacteremia, esta terapia isolada não consegue erradicar os abscessos
intra-abdominais e, portanto, é secundária a uma drenagem imediata e
efetiva destas formações.
Até
a metade da década de 1970, a drenagem cirúrgica era considerada
obrigatória para o tratamento de abscessos intra-abdominais. Contudo, o
tratamento sofreu mudanças dramáticas em apenas alguns anos, com a
introdução da drenagem percutânea de abscessos guiada por ultrassom ou
TC. A ultrassonografia pode ser usada para guiar a drenagem de coleções
amplas ou superficiais, mas a TC é preferida para abscessos menores ou
mais profundos.58 Muitos estudos demonstraram que a drenagem
percutânea de abscessos é uma técnica segura e efetiva para uma ampla
gama de coleções intra-abdominais. As taxas de sucesso variam de 47 a
92%, e a maioria dos estudos relata taxas de sucesso superiores a 80%,
similares às taxas de sucesso obtidas com a drenagem cirúrgica.59
A falha do tratamento é mais comum em pacientes imunossuprimidos e
naqueles com flegmões pouco definidos, abscessos multiloculares,
hematomas espessos ou infecções organizadas, ou abscessos com tratos
fistulosos associados.
Apenas
as características radiográficas são insuficientes para indicar quais
abscessos responderão à drenagem percutânea. Assim, uma medida
aparentemente razoável é instituir a drenagem percutânea em todos os
casos de pacientes que possuem uma via de acesso segura, contanto que o
procedimento seja realizado por funcionários capacitados e o paciente
não necessite de intervenção cirúrgica. A drenagem cirúrgica, então,
pode ser usada para pacientes com recidivas, insuficiências ou
complicações. É necessário que um cirurgião esteja envolvido na tomada
da decisão sobre o método de drenagem a ser usado, pois um cirurgião
será chamado em caso de insucesso da abordagem inicial. Mesmo no caso
dos abscessos que geralmente requerem intervenção cirúrgica, como os
abscessos periapendiculares e diverticulares e as infecções pancreáticas
(ver adiante), a drenagem percutânea permite controlar temporariamente a
sepse e, com isso, adiar o procedimento operatório até que as condições
ideais sejam alcançadas. Eventualmente, este procedimento permite a
realização de apenas um procedimento definitivo, em vez de vários
procedimentos em fases.60
Relatos
recentes mostram que alguns abscessos pequenos, que podem ser
diagnosticados por TC, são resolvidos apenas com terapia antibiótica e
sem necessidade de drenagem cirúrgica ou percutânea. Nestes relatos, o
tratamento não cirúrgico de abscessos maiores que 5 cm tendeu à falha,
porém a maioria dos abscessos com este tamanho ou menores foram
resolvidos apenas com tratamento antibiótico.61,62 De
qualquer forma, quando há uma “janela” segura até o abscesso, bem como
disponibilidade dos conhecimentos especializados necessários, uma forma
de tratamento provavelmente satisfatória consiste em instalar um cateter
percutâneo. Se o abscesso for pequeno, o acesso percutâneo for difícil e
o paciente não estiver gravemente doente, então uma abordagem lógica é
iniciar um curso de antibióticos e acompanhar a evolução do paciente. Se
o abscesso aumentar de tamanho, uma via de acesso percutânea pode ser
disponibilizada. Caso o quadro do paciente piore, então uma abordagem
aberta para drenagem passa a ser necessária, se o acesso percutâneo não
for possível.
Existem
algumas estratégias preventivas disponíveis para diminuir a
probabilidade tanto de infecção da ferida (infecções no sítio de incisão
cirúrgica) como de formação de abscesso intra-abdominal (infecções do
sítio cirúrgico em órgão/espaço) após cirurgias abdominais.63 Entre estas estratégias, estão o uso profilático de antibióticos,64 a manutenção da normotermia na sala cirúrgica,65,66 o fornecimento de altos níveis de oxigênio inspirado,66-68 a ressuscitação com líquidos apropriada durante a operação,69 e a manutenção da euglicemia no período perioperatório.70-73
Abscessos intraperitoneais
Os
abscessos intraperitoneais podem ser formados de 2 maneiras: (1) a
partir de uma peritonite difusa, em que há desenvolvimento de loculações
de pus em áreas anatomicamente dependentes, como na pelve, goteiras
paracólicas e áreas subfrênicas; ou (2) por disseminação da infecção a
partir de um processo inflamatório ao peritônio contíguo. Cerca de 1/3
dos abscessos intra-abdominais são intraperitoneais, e quase a metade
dos abscessos intraperitoneais ocorre junto ao quadrante inferior
direito.
Abscessos subfrênicos
Cerca
de 60% dos abscessos subfrênicos desenvolvem-se após cirurgias que
envolvem o duodeno e o estômago, trato biliar ou apêndice; 20 a 40% dos
abscessos desenvolvem-se após a ruptura de uma víscera oca (como uma
apendicite aguda ou úlcera péptica perfurada), em que a infecção é
subsequentemente lacrada. Um percentual variável de abscessos
subfrênicos desenvolvem-se após um traumatismo abdominal penetrante ou
fechado, sendo que menos de 5% se desenvolvem na ausência de condições
predisponentes. O diagnóstico dos abscessos subfrênicos às vezes é
adiado por causa da localização destas formações junto à porção
intratorácica da cavidade peritoneal, que é inacessível pelo exame
físico.
Características clínicas.
As manifestações de um abscesso subfrênico variam de uma doença aguda
severa a um processo crônico insidioso caracterizado por febre
intermitente, perda de peso, anemia e sintomas inespecíficos. A síndrome
crônica é mais frequentemente observada em pacientes previamente
tratados com antibiótico. No passado, este tipo de abscesso podia
permanecer subclinicamente latente por períodos prolongados, antes do
diagnóstico. Isto é incomum, atualmente. Diante de qualquer paciente com
febre de origem indeterminada que tenha passado por cirurgia abdominal –
mesmo quando a operação foi realizada há muitos meses – deve ser
levantada a suspeita de abscesso intra-abdominal e realizado um exame de
TC.
Picos
de febre, dor e sensibilidade abdominal (mais comumente junto à margem
costal inferior), e perda de peso são manifestações comuns. As
características de um processo intratorácico, como dor no ombro, dor
torácica, tosse, dispneia, estertores e efusão pleural, são mais
frequentemente observadas do que as características de uma condição
intra-abdominal. É comum haver leucocitose. Em raros casos, os pacientes
apresentam uma doença febril, obscura e prolongada, que é agravada pelo
desenvolvimento repentino de um empiema quando o abscesso subfrênico se
rompe através do diafragma. Embora esteja presente em cerca de 80% dos
pacientes com abscesso subfrênico, o líquido pleural geralmente é um
transudato. A efusão pleural que se desenvolve após uma cirurgia
abdominal é mais comumente causada por uma inflamação que ocorre abaixo
(e não em cima) do diafragma.
Diagnóstico.
TC e ultrassonografia são as melhores técnicas radiológicas para
estabelecer o diagnóstico. Os achados de uma radiografia encontrados em
pacientes com abscesso subfrênico incluem derrame pleural, limitação da
movimentação diafragmática, elevação de um hemidiafragma e pneumonia de
lobo inferior ou atelectasia.
Abscessos retroperitoneais
As
infecções piogênicas do retroperitônio manifestam-se como outras
infecções intra-abdominais. De fato, muitos abscessos intra-abdominais
surgem a partir de distúrbios viscerais abdominais. Mais de 2/3 dos
pacientes com abscessos retroperitoneais também apresentam condições
subjacentes debilitantes, tais como tumores malignos, uso de
corticosteroide, alcoolismo e diabetes. Mais de 80% destas infecções são
polimicrobianas, envolvendo organismos entéricos aeróbicos e
anaeróbicos.74 A TC é decisiva para o diagnóstico dos
abscessos retroperitoneais. Isto também é valido para os abscessos
primários do psoas, que frequentemente são causados por S. aureus,75 e para os abscessos perinéfricos, que em geral se originam no trato urinário.76
Assim como em outros abscessos, o sucesso do tratamento requer drenagem
percutânea ou cirúrgica imediata e administração de antibióticos
adequados.76,77
Infecções pancreáticas
A
maioria das infecções pancreáticas ocorre como complicação da
pancreatite, que pode resultar de alcoolismo (38%), cálculos biliares
(11%), traumatismo cirúrgico (16%) ou outros fatores (35%). As
definições antigas de necrose peripancreática, necrose pancreática
infecciosa e abscessos pancreáticos foram abandonadas por serem de
difícil aplicação e pouca utilidade.78 As infecções
associadas à necrose pancreática tendem a ocorrer durante as primeiras 3
semanas subsequentes ao início da pancreatite necrotizante aguda, sendo
pouco localizadas junto ao retroperitônio. O controle da fonte é
difícil. A morbidade e mortalidade podem ser altas. A necrose infectada
muitas vezes requer desbridamento cirúrgico aberto, apesar dos relatos
promissores do uso combinado de drenagem percutânea e desbridamento
assistido por laparoscopia. As infecções mais localizadas tendem a
ocorrer após mais de 3 semanas do início agudo da doença. As infecções
localizadas tardias com frequência podem ser tratadas por via
percutânea, mas ainda tendem a necessitar de um controle de foco
adicional.79
As
infecções pancreáticas muitas vezes são polimicrobianas, tipicamente
contendo 3 a 4 espécies de bactérias. Estas são, na maioria, entéricas e
incluem E. coli, enterococos, espécies de Klebsiella e micro-organismos
anaeróbicos, como as espécies de Bacteroides, Peptococcus, Fusobacterium e Clostridium. Pode haver envolvimento de micro-organismos não entéricos, incluindo estafilococos, P. aeruginosa e, menos frequentemente, espécies de Candida.
A bacteremia ocorre em cerca de 26% dos casos. Relatos recentes
demonstram uma alteração da flora microbiana habitual da pancreatite
infecciosa, com aumento da concentração de cocos gram-positivos e fungos
(p. ex., espécies de Candida), provavelmente secundário ao uso
cada vez mais comum de antibióticos profiláticos por períodos
prolongados em casos de pacientes com pancreatite necrotizante.80,81
Dados recentes mostraram que a administração profilática de
antibióticos em pacientes com pancreatite necrotizante ainda não
infectados é inefetiva para a prevenção de infecções pancreáticas e
peripancreáticas.82-84 Sem dúvida, as infecções pancreáticas
ou extrapancreáticas, que ocorrem durante o curso de uma pancreatite
aguda, devem ser diagnosticadas e tratadas quando forem detectadas.
Características clínicas.
A manifestação inicial da pancreatite necrotizante aguda indiferenciada
envolve febre e leucocitose, bem como dor e sensibilidade abdominais.
As características clínicas não permitem diferenciar pacientes
infectados e não infectados. A maioria das infecções ocorre após pelo
menos 1 semana do início da doença.
Diagnóstico.
O método mais acurado para determinar se uma área de necrose
pancreática ou peripancreática está infectada é realizar a aspiração com
agulha fina guiada por TC, seguida de coloração de Gram e cultura. Esta
etapa é indicada se a condição do paciente sofrer deterioração após uma
estabilização ou melhora inicial.85
Tratamento.
O controle do foco é obrigatório. Este controle frequentemente pode ser
feito por desbridamento cirúrgico aberto, às vezes auxiliado por
drenagem percutânea, técnicas laparoscópicas ou ambas.86 O
resultado melhora quando a intervenção é feita mais tardiamente no curso
da doença. A terapia antibiótica é a mesma empregada no tratamento de
outras infecções intra-abdominais.
Abscessos viscerais
Abscessos hepáticos
Epidemiologia e etiologia.
Os abscessos hepáticos piogênicos ocorrem em diversos contextos, tais
como infecção do trato biliar, extensão direta a partir de um sítio
contínuo de infecção, bacteremia do sistema portal a partir de focos
sépticos intra-abdominais e traumatismo não penetrante.87-89
Os abscessos hepáticos podem ocorrer como resultado de bacteremia
sistêmica ou como complicações de uma cirurgia abdominal ou traumatismo
abdominal penetrante. Estes abscessos também podem ocorrer como
complicações do carcinoma hepatocelular,90 doença granulomatosa crônica,91,92
ou procedimentos de drenagem biliar trans-hepática percutânea
realizados em pacientes com câncer e icterícia obstrutiva. Os abscessos
piogênicos podem ser únicos ou múltiplos.
Assim
como outros abscessos intra-abdominais, os abscessos hepáticos
piogênicos envolvem principalmente bactérias entéricas. Um total de 2/3
destes abscessos têm origem polimicrobiana, enquanto pelo menos 1/3
envolvem micro-organismos anaeróbicos. S. aureus pode ser o organismo causador em pacientes com bacteremia e em crianças. As espécies de Klebsiella
frequentemente são responsáveis pelos abscessos hepáticos formadores de
gases, que de forma típica ocorrem em pacientes diabéticos.93
As hemoculturas são positivas em cerca de metade dos pacientes com
abscesso hepático piogênico. Além disso, existe a possibilidade de
ocorrer infecções metastáticas.
Aspectos clínicos.
A febre é o sintoma mais comum e está presente em quase 90% dos
pacientes. Calafrios e perda de peso ocorrem em cerca de metade dos
casos. Como a dor abdominal, sensibilidade abdominal ou hepatomegalia
são encontradas em apenas 50% dos casos; muitos destes pacientes
apresentam febre de origem indeterminada. A leucocitose está presente na
maioria dos casos. A icterícia é incomum, mas os níveis séricos de
fosfatase alcalina estão elevados em quase todos os pacientes. A ruptura
de um abscesso hepático, ainda que seja incomum, frequentemente é
acompanhada de dor abdominal difusa e choque séptico.94
Diagnóstico. A TC é a técnica diagnóstica mais acurada [Figura 1],
com um rendimento de resultados positivos em até 95% dos casos
confirmados. A ultrassonografia também é útil e fornece resultados
positivos em até 80% dos casos confirmados. O indício inicial para
determinação do diagnóstico pode ser obtido com radiografias simples,
que podem mostrar uma elevação do hemidiafragma direito, derrame pleural
de lado direito ou nível ar-líquido.
Figura 1. Tomografia computadorizada (TC) (a) mostrando um abscesso hepático multilobular (seta). Decorridos 4 dias da drenagem percutânea do abscesso, a TC (b) mostrou a resolução da cavidade do abscesso.
O
principal diagnóstico diferencial é o abscesso hepático amébico [ver
Infecções por protozoários]. Os abscessos amébicos tendem mais a ser
solitários e confinados ao lobo direito do fígado. Uma história de
viagem ou diarreia pode sugerir o diagnóstico. O exame de fezes para
pesquisa de ovos e parasitas que revela a presença de Entamoeba histolytica
é altamente sugestivo, porém os resultados muitas vezes são negativos
em casos de pacientes com amebíase hepática. Entretanto, a maioria dos
pacientes com abscessos hepáticos amébicos apresenta sorologia amébica
positiva. É importante notar que E. histolytica foi reclassificada em 2 espécies morfologicamente similares, porém geneticamente distintas: E. histolytica, que é o protozoário patogênico causador da disenteria amébica e do abscesso hepático; e Entamoeba dispar,
que é um protozoário não patogênico comensal de seres humanos.
Recomenda-se realizar o teste sorológico específico à base de ensaio
imunossorvente ligado à enzima (ELISA), utilizado para distinguir entre a
colonização por E. dispar e a colonização por E. histolytica, antes de tratar a amebíase.95,96 Menos frequentemente, os cistos hepáticos ou neoplasias podem ser confundidos com abscessos hepáticos.
Tratamento.
Enquanto a cirurgia antigamente era considerada a base da terapia, a
drenagem percutânea agora deve ser o procedimento de drenagem inicial
para a maioria dos pacientes com abscessos hepáticos piogênicos. Os
antibióticos com ampla cobertura contra organismos entéricos e
estafilococos devem ser administrados por via endovenosa até que os
patógenos específicos tenham sido isolados a partir do abscesso ou da
circulação sanguínea.97 A mortalidade depende em grande parte da doença subjacente e é mais alta entre os pacientes com câncer.98
A terapia cirúrgica é necessária em casos de rompimento de abscesso,
porém a mortalidade associada é alta, aproximando-se de 44%.94
Abscessos esplênicos
Os abscessos esplênicos são incomuns.99
Diferente dos outros abscessos intra-abdominais, estes costumam ter
origem bacterêmica, especialmente em pacientes com endocardite. Em
outros pacientes, uma hemoglobinopatia, vasculite com infarto esplênico,
traumatismo e imunossupressão podem atuar como fatores predisponentes.
Febre e calafrios, além de uma dor no quadrante superior esquerdo são
achados comuns. Quando o polo superior do baço é afetado, pode haver
predominância de sintomas diafragmáticos, pleurais e pulmonares, contudo
os sintomas peritoneais se tornam mais comuns quando o polo inferior é o
sítio de infecção. Entre os organismos responsáveis, estão S. aureus, estreptococos, espécies de Salmonella
e bactérias entéricas. Os fungos são importantes como causa em
pacientes imunocomprometidos. A TC e a ultrassonografia são os exames
radiográficos de maior utilidade. A instituição de uma terapia
antimicrobiana adequada é essencial. A esplenectomia era frequentemente
considerada necessária para promoção de um tratamento efetivo no
passado, mas hoje há evidências indicando que a drenagem percutânea ou
até mesmo apenas a terapia antibiótica podem ser suficientes em
determinados casos selecionados.100 Experiência adicional se faz necessária para que o tratamento ideal destas infecções pouco comuns possa ser determinado.101
Os autores não possuem relações comerciais com os fabricantes de produtos ou prestadores de serviços mencionados neste capítulo.
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